This story is fiction, and any events or near-similar events in actual life which did transpire have not prejudiced the author toward any figures involved or uninvolved; in other words, the mind, the imagination, the creative facilities have been allowed to run freely, and that means invention, of which said is drawn and caused by living one year short of half a century with the human race . . . and is not narrowed down to any specific case, cases, newspaper stories, and was not written to harm, infer or do injustice to any of my fellow creatures involved in circumstances similar to the story to follow.


(Charles Bukowski, "The Murder Of Ramon Vasquez")

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A vida venceu a arte

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A vida venceu a arte.

Desce o pano.

R.I.P. Escrita Vulgar (jan/11- dez/12).

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Post só para falar mal de Mirna

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O tempo é curativo, o tempo permite olhar pra trás com melhores olhos. Ontem não sabia, agora sim; amanhã mais ainda. E tempos depois eis Mirna, mas Mirna como que congelada no calendário. Mirna que mantém o mesmo espírito, o mesmo temperamento, e quando digo isso me refiro também ao aspecto ruim. Mirna que não alçou vôo, que não rompeu o círculo, Mirna que mantém a tradição trágica dos antepassados.

A Mirna sem progresso algum.

Já eu esse tempo todo... Ah, os livros que li, as experiências que vivenciei. Da sarjeta ao céu, o despencar na cauda do cometa, o flutuar na estratosfera. Eu que fui ao limbo e voltei, e que como o sufi Rumi rasguei minhas roupas em pedaços, eu que já não queria nada, eu que passei a querer. Ah, e os lugares... Vocês já falaram com o Diabo cara a cara? Tenho a impressão da minha alma crescer ao ritmo do universo.

Mirna, não. Optou pelo pequeno, pelo prosaico, pelo rapaz da cidadezinha vizinha. Serei justo: não é que ela não queira partir. Sente o impulso, mas é mais forte que ela. O círculo vicioso aperta como uma anaconda. Mirna está fadada a mera mãe de família, matrona feliz a costurar as meias do rapaz da cidadezinha.

Reencontrar Mirna tanto tempo depois é estranho. Deixando de fora a beleza pouco resta. A frugalidade, quem sabe a inconsistência, o espírito volúvel; o egoísmo, talvez. Imaturidade, decerto. Vendo com os óculos do tempo passado, concluo: sem Mirna, fiz vôos maiores. Foi melhor assim, e respiro sereno, como um homem que relembra sem mágoas uma tragédia há muito passada.

Assomando no horizonte, enquanto isso, está Alice, como uma promessa (ou uma ameaça).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A voz no escuro

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Acordei com minha mãe me chamando. Foi um chamado límpido, claro, bem direto ao ouvido. Abri os olhos na semiescuridão do quarto e tentei me situar. De novo a voz dela me chamando- vinha de fora do quarto. Ainda sonolento me levantei e fui em direção à porta, quando ouvi, pela terceira vez, o chamado. Ninguém na sala; todos pareciam ainda estar dormindo. O chamado -o quarto- vinha, suave, da cozinha. Pois bem, me aproximei: a porta da cozinha estava entreaberta e, pela fresta, o que se via era uma profunda escuridão. Ainda assim era de lá que vinha a voz de minha mãe, já pela quinta vez.

Lembrei-me de um episódio que li sobre Marco Polo. Em suas andanças pela Ásia, atravessara um deserto famoso por iludir viajantes. Algum infeliz, geralmente dentre os retardatários da caravana, era chamado pelo nome. Intrigado com aquilo, seguia a misteriosa voz e acabava por se perder dos demais, para nunca mais ser encontrado. Aquela história veio à minha mente naquela fração de segundo, e, primeiro, me arrepiei para, em seguida, disparar rumo ao quarto da minha mãe. A pobre estava lá, dormindo tranquilamente, e não entendeu nada.

Bem, as aventuras de Marco Polo podem afetar meninos impressionáveis. E cérebros sonolentos pregam peças aos sentidos. Ou seria algum espírito dos confins do deserto de Gobi extraviado cá no Rio de Janeiro? Não sei, hoje não acredito nessas coisas. Mas, naquele dia, que ouvi, ouvi. Acredite- se quiser.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Azul kafkiano

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Azul kafkiano

ouvi a expressão
e gostei

é perfeitamente adequada

é musical, é
excêntrico

e, além disso

(na verdade esse é o motivo
de ter gostado)

ela tem olhos
azuis

azuis kafkianos

porque, mesmo inocente,

me vi prisioneiro
sem direito à apelação.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

No mundo da lua

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Será coincidência que a melancolia volte quando escrevo sobre Alice? Aqui Mirna já é solar e supernova, enquanto Alice lua e eclipse. E é no delírio lunar que reencontro Alice, pálida como sempre foi, ao menos aqui nas fotos que sobraram.

Os efeitos da lua sobre os homens. Torno-me um licantropo raivoso. Dentes à mostra, pêlos eriçados, aguardando a bala de prata direto para o peito, e a bala de prata se chama Alice. "Lunático" vem de lua, ela que embaralha as mentes. Ritmos das marés e oceanos! A lua condiciona tudo, e é como a lua que Alice orbita em torno de mim. Mas só em espírito, só como espectro: fisicamente está distante. A lua mais perto da Terra que Alice de mim.

Estou dizendo essas coisas porque entraremos em lua cheia. E lembrei que, uma vez, Alice e eu brincávamos sobre nos encontrar na superfície lunar.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Deixo tudo, como quem não quer nada

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Em "Pesadelo Refrigerado" Henry Miller diz que um dia gostaria de partir para o Tibete e de lá desaparecer, criando um mistério insondável para seus futuros biógrafos. Tenho tido a mesma vontade: não necessariamente o Tibete, mas um lugar igualmente distante, inacessível para a maioria. Talvez algo mais próximo: adentrarei Brasil a fundo, sertões e igarapés, pastos e mata. Em alguma cidade do interior, em um ponto perdido qualquer- de Minas a Rondônia, do Paraná ao Maranhão, estarei, escondido, em algum lugar não captável pelo GPS.

Será assim: quando não suportar mais a vida, quando estiver às raias do desespero. Deixo tudo, como quem não quer nada: "vou ali e já volto", direi para as pessoas, e partirei para o mais próximo aeroporto ou rodoviária. Minhas parcas economias talvez não me levem muito longe. Mas sempre se pode pedir carona e, oras, é para isso que existem os pés. Então partirei. Ir EM-BO-RA, e é um prazer sensual demorar nas sílabas.

Doravante viverei incógnito. Arranjarei a vida de uma forma totalmente diferente para mim até então: agricultor, boiadeiro, gerente de mercearia, garimpeiro. Rimbaud largou a poesia e foi ser traficante de armas na África. Eu, tendo menos a largar, já me vejo agora traficando ideias em algum lugar ao sul do Equador.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Mas eu, ciente de minhas fraquezas

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Eu mencionei que Alice era casada? É que isso não era obstáculo digno de nome. Nos dias em que era minha era como se não houvesse rival no universo. Tão natural que o mundo lá fora não importava, certidão de casamento de papel picado, aliança no dedo metal sem valor. Eu o Único Homem, ela a Eva em nosso Éden desajeitado. Aos pés, esmagada, a serpente do ciúme.

Digo que ser casada não era obstáculo porque Alice abandonaria tudo por mim. Ela, que tinha muito mais a perder, doava-se generosa e escolhia o arriscado. Mas eu, ciente de minhas fraquezas, tive medo. E aquele meu choro amargurado, no chão do quarto escuro, não era apenas por frustrar Alice. Era também por minha covardia, minha incapacidade, era por mim mesmo que eu também chorava.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Coisas impossíveis

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Coisas impossíveis
às vezes me pego a imaginá-las.

Experimente um dia:
é divertido.

Mas coisas impossíveis mesmo.

Neve no Saara
E peixe afogado

são coisa de amadores.

Um telefonema de Mirna
ou capitalismo humano

isso sim é inconcebível.

domingo, 4 de novembro de 2012

Confira nos mapas de meteorologia

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Ao contrário do hemisfério norte, aqui o ano termina com o calor. É entre esferas de fogo e soda cáustica que o ano chega ao epílogo, o delírio laranja-escuro dos 40° na Avenida Presidente Antônio Carlos. Há um círculo vermelho grafado sobre a cidade do Rio de Janeiro: confira nos mapas de meteorologia.

Comentaram comigo sobre a sensação de forno, a solda a quinhentos celsius, metal em vapor no núcleo de estrelas. E a imagem, mais cá terrenal, do sedento atravessando as dunas.

Nenhuma brisa. As folhas estagnadas nos galhos. Nada se move: metáfora para nossas vidas.

De outubro a março é assim. Quanto ao inverno, esse farsante, durar uma semana já é muito.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A morte é a mesma

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Não quero aqui comparar Alice e Mirna. Roubaram-me o coração de seus jeitos: e cada ladra tem seu próprio modus operandi. Mas é injusto falar aqui em roubo, quando eu voluntariamente cedi, como o condenado subindo alegre ao cadafalso. O que importa é que não quero compará-las.

Essas duas nunca se conheceram e, com certeza, jamais se conhecerão. Sem tomarem conhecimento uma da outra, contudo, estão ligadas sem saber, como faces da mesma moeda, damas do mesmo baralho. Uma é a de copas, outra de espadas. Uma dá a outra tira, uma fere a outra cura. E trocam de papeis, sempre. O que era veneno em uma se tornava remédio na outra. Sem se conhecerem, eram irmãs.

Para não ficar muito confuso: Alice é anterior e duradouro, Mirna novo e rápido. Uma a garoa constante que dura uma semana, a outra a tempestade de vinte minutos que arrasa a cidade. Estão indissociavelmente ligadas porque me afastei de Alice por causa de Mirna, mas finalmente encontrei Alice pelo desencontro com Mirna.

Sem saber, uma abriu a porta para a outra. Mas que importa isso hoje, se tornaram a fechá-la?

Não quero aqui comparar Alice e Mirna. A forca ou o pelotão de fuzilamento, a morte é a mesma.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Apesar de tudo, nunca chorei

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Apesar de tudo, nunca chorei por Mirna, e sim por Cecília e Vanessa- e também por Alice, e já era momento de Alice pousar aqui. Porque adiei por algum tempo esse momento, porque achava ainda não estar preparado. Mas eis-nos falando em Alice, e falar em Alice sempre traz o cheiro de estrada e distância.

Vocês já imaginaram isso? Tempo e espaço conspirando contra. O Brasil profundo confunde nossa alma cosmopolita. Eu não encontraria Alice no interior, senão na megalópole, na cacofonia da cidade grande. E Alice transitava por ambos ambientes, e era o mundo, e não ela, que precisava se adaptar.

Falei sobre o tempo conspirando contra. É que é uma coisa inexorável. Quando, no poema que escreveu para mim, Alice insistia no verso "antes que amanheça...", sabia exatamente disso. Antes que, antes que, o tempo, o tirano.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Já sei por que viagens longas

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Já sei por que viagens longas

(falo daquelas passivas, na
janela do ônibus ou no banco do carona)

são tristes.

São tristes porque temos mais tempo
com nós mesmos

e assim passamos em revista
as velhas frustrações de ontem
o amor sem retorno
o emprego que não veio
a luta em vão
o arrependimento pela palavra dita

tentamos nos distrair,
conversar, ouvir música
ler alguma coisa

mas a lembrança
essa estranha companheira de viagem
nos segue estrada afora.

Já sei por que viagens longas
são tristes

é porque nos levam
a outra espécie de viagem.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fica o blogueiro notificado

4 comentários:
Sr. Blogueiro

Fica V.Sa. notificado de que minha cliente, a srtª Mirna ***, não autoriza, permite ou concede que seu (dela) nome seja citado, escrito, referenciado ou lembrado nas postagens deste blog, de qualquer forma que seja. Não autoriza, permite ou concede que seja usada como musa inspiradora, nem tampouco que lhe seja atribuída a prática de despedaçar corações. Fica V. Sa. notificado de que minha cliente mal se recorda do breve espaço de tempo em que estiveram juntos e, apesar de deixar consignado aqui que foram bons momentos, já estão há muito superados pelo tempo. Minha cliente deixa claro que a insistência de V. Sa. em expor sua relação perante o público -apesar da baixíssima quantidade de leitores de vosso blog-, causa constrangimento, constrangimento alheio, inclusive, conforme ela faz questão de frisar, dado ser ridículo que um homem adulto se humilhe publicamente dessa forma como V. Sa. tem feito.

Fica o blogueiro notificado de que quaisquer sonhos que porventura venha a ter com a srtª Mirna ***, de teor afetivo ou romântico, devem ficar restritos aos devaneios pessoais de V. Sa., sendo vedada sua divulgação; já os eróticos estão mais que proibidos (notadamente por ser V. Sa., conforme minha cliente, um "devasso", expressão dela). Melhor dizendo: fica V. Sa. terminantemente proibido de trazer a srtª Mirna *** para vossos sonhos, quaisquer que sejam, mesmo os mais cândidos.

Fica o blogueiro notificado, por fim, de que o descumprimento do aqui exposto importará nas medidas judiciais cabíveis.

Nestes termos,

Dr. Clóvis Sobral Pinto Barbosa
OAB/RJ 374738192

terça-feira, 25 de setembro de 2012

De suicidas insuspeitos

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(escrito num bar da Rua do Carmo, centro do Rio)

Será que essas pessoas que se suicidam
para espanto da família, que diz
"- mas ele estava tão feliz!
- mas ele tinha tantos planos!
- não, ele jamais..."

não, ele jamais faria isso
diz a família estupefata

mas será que o tal feliz
tão cheio de planos

no fundo já não acalentava
a ideia
e tudo -ser feliz e cheio de planos-
nada mais que fachada?

para espanto da família
estupefata.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Se há pérolas nessa história

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Uma coisa que acho engraçada, quando penso em Mirna, é que talvez nunca venha a saber o quanto foi importante. Não culpa minha, em mostrar, mas dela, em perceber. Muito amor dado em vão para quem não merece. Então no instante da revolta eu me lembro do bíblico "não jogar pérolas aos porcos" e a heresia, contra o mito cristão e contra Mirna, me satisfaz por um tempo. Até que a maldita música volte, os malditos lugares ressurjam, e as recordações abram caminho novamente. E a heresia dá lugar à contrição.

O amor dado a Mirna não foi pérola aos porcos. "Eu nunca, nunca mesmo, queria te fazer infeliz", ela disse, "se for para isso prefiro colocar a cabeça no lugar". E quem diz algo assim possui uma nobreza insuspeita, ao menos que seja fingimento. Mas isso tudo é indiferente. Afinal, não há que ter revolta: ao amor basta amar. Ser correspondido é mero detalhe. E pérolas valerem muito, e porcos pouco, são apenas juízos de valor, preconceitos repetidos desde a Bíblia. Se há pérolas nessa história, eram os dentes de Mirna ao sorrir.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

E eu, que não acredito em Deus

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Jesus Cristo, nos Evangelhos, repete reiteradamente ser o Filho do Homem. Isso desconcerta os judeus, aflitos com a heresia. Em dada passagem diz ser mais antigo que Abraão e, contam as Escrituras, escapou por pouco de ser apedrejado. Rama, no Ramayana, é outro papo. Apesar de ser Vishnu em pessoa, ignorava sua própria natureza divina. É preciso, no final do épico, que os demais deuses lhe lembrem: és Narayana, graças a quem o mundo existe. "Não", retruca Rama, "sou apenas um mortal da linhagem de Dasárata". Um deus modesto. Mais que o Cristo que, como dito, lembrava sempre aos conterrâneos de sua origem celeste.

Deus caminhando entre nós, cônscio ou não disso. Em todo caso em carne e osso (mesmo que de uma matéria diferente), andando, comendo e dormindo. Cuidado em quem você esbarra no cotidiano: pode ser o Todo-poderoso encarnado.

E eu, que não acredito em Deus, acho justamente isto bonito: pensar que o vizinho do lado pode ter um deus em si, pensar que cada homem ou mulher ao nosso redor pode ser, sem que saibamos, uma divindade oculta. E assim, como sagrado, tratar o semelhante.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Pensava em escrever uma poesia sobre o mar

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Hoje me lembro que, mais cedo, pensava em escrever uma poesia sobre o mar. O motivo, prosaico, foi passar de ônibus pela orla. Foi o modo como as ondas quebravam, lenta mas resolutamente, que me despertou a inspiração. O branco da espuma e, principalmente, o desejo de sentir a maresia. Daria um bom poema.

Tinha o esquema na cabeça: verso a verso, estrofe a estrofe. Que bela poesia, pensei, será essa poesia sobre o mar. O branco da maresia e o desejo de sentir a espuma, o desejo branco e a espuma-maresia, a maresia-branca e o desejo-espuma, fusão lírica no fundo de rochas escuras. E o barulho do mar, e a ave no céu. E a areia, e... Verso a verso, estrofe a estrofe. Que belo mar, pensei, será esse mar de poesia.

Horas depois, ao tentar colocar o poema no papel, não consegui. Deu-se o branco, o branco da espuma. Deveria ter registrado da forma que pudesse, assim que os versos me vieram à cabeça, lá mesmo no ônibus, com qualquer lápis em qualquer papel, mas não o fiz: e agora desapareceram. Como a ave no céu os versos foram embora pra longe. Ou - e isso é mais violento e menos simpático - se chocaram, irremediavelmente, contra o fundo de rochas escuras.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quando for assim você sabe

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Quando você estiver triste
E as luzes parecerem tênues
Da tristeza que vai fundo
O coração em pedra gelada convertido
Quando você sentir os membros
Congelados no espaço-tempo

Quando é assim, você sabe
Sem guru nem guia ou frase
Quando é assim, você sabe
Portas irremediavelmente trancadas

O grito caindo no vazio
No vácuo que envolve os planetas

E "consolo" é só palavra vazia, você sabe
Quando tudo foi mesmo em vão

E o que há é a névoa cinza
E cinza você sabe sempre foi a cor favorita
Quando as luzes mesmo tênues vão se apagando

E lembram alguma história ouvida na infância

(e as histórias da infância se esvanecem na memória,
você sabe)

Quando for assim
Bem, quando for assim você sabe
Basta abrir um blog
E derramar no post.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Para a lua de hoje à noite

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Entusiasmado pela lua, acabei atravessando na calçada errada. Nem percebi: ao menos olhei para os lados, caso contrário ainda seria atropelado em contemplação. Que grandioso disco de prata, circunferência perfeita tal qual graças ao compasso de um gigante. Flutuava no éter ou, antes, era como um furo na abóbada escura do céu. Havia profundos sulcos: os mares lunares -rima involuntária- dos astrônomos que o povo leigo dizia serem São Jorge e o Dragão, e, não posso deixar de levantar isso, talvez os leigos sejam não o povo mas os astrônomos. Há os sulcos na lua, em todo caso, e por lá deslizavam os marcianos pouco antes da Atlântida submergir lá pelo século oitavo de Avalon.

Sem perder a lua de vista sigo caminhando, agora entrando pela esquina do Fórum. O disco de prata parecia crescer e com ele subia o ritmo das marés- céu e oceano se interligam como só a natureza sabe. E, já defronte à grande estátua de Rui Barbosa, o farol lunar por cima de tudo, pensei em como era mesmo fácil para os antigos enxergarem naquilo um deus. Jaci para os nossos índios ou Diana dos romanos, a lua é como o olhar da divindade.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Metáfora agrícola

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Após Mirna era tudo terra arrasada, e foi quando conheci Gisele. Raio de sol entre nuvens, talvez fosse ela o redespertar da primavera- e foi, mas apenas durante as conversas pela madrugada, como algo novo a se revelar. Mas o destino é pródigo em nos plantar falsas esperanças.

Digo isso porque, enquanto conversávamos na praça de alimentação do shopping, a mesa de bar entre nós, a Gisele que se descortinava para mim era sóbria e taciturna, tudo que eu não precisava. Pois a terra arrasada quer agricultores e sementes e água em abundância- cuidados, em outras palavras, coisa que a máscara de indiferença de Gisele desautorizava. Exaurida, a terra devastada por Mirna pedia o adubo fertilizante que só a expectativa do novo amor pode dar.

Gisele, ao contrário, era como a agricultora distraída, que não sente a necessidade do solo. Assim fenece o pouco que sobra, o solo uma vez úmido hoje desértico, dos pomares nada mais resta que cinza. E não se erguerão de novo por causa de Gisele, camponesa relapsa.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Ódio tardio

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Ao chegar na casa de Rodolfo, encontrei-o agitado. Na véspera, Nelson havia lhe feito um chiste, e agora se sentia ofendido. Rodolfo era assim: no dia seguinte se lembrava do fato banal da noite anterior e era tomado por um ódio tardio. "Calma, Rodolfo. Ele falou brincando", como sempre tentei colocar panos quentes, e como sempre era em vão. Rodolfo estava transtornado. Socou a parede- literalmente, socou a parede. "Aqui na cara dele!", urrou, e acho mesmo que as paredes do apartamento tremeram com o golpe. Diabos, estava mordido mesmo, pensei: a parede que era socada se metamorfoseara, na ira de Rodolfo, na cara de Nelson. Pobre Nelson- melhor ir preparando o funeral.

A despeito da ira assassina, Rodolfo quis me acompanhar ao Empório, em Ipanema. Na verdade jamais entrávamos no Empório; o bom mesmo era o lado de fora, tribos e tribos se esbarrando num clima de azaração regado a cerveja e marijuana. Cá estávamos, pois, e em dado momento Rodolfo desapareceu. Um golpe do destino pois, quem vem lá, o próprio Nelson em pessoa. Viu-me e me cumprimentou, e tratei, amigo zeloso que era, de alertar: "o homem tá uma fera contigo". Nelson, homem de letras e não de brigas, arregalou os olhos preocupado. Não compreendia, pois na noite anterior Rodolfo não mostrara contrariedade pela brincadeira. Rapidamente elocubramos formas de aplacar Rodolfo, mas sendo Rodolfo pior que uma mula, quando irado (mesmo que uma ira atrasada), pouca coisa pareceria ter êxito.

Nisso, olhando para nós com a expressão típica dos paranoicos -raivosa e dolorida-, a poucos metros, eis Rodolfo. Nelson deve ter gelado, e eu também, pois estava agora na posição de cúmplice de Nelson. Era preciso agir rápido: Nelson, talvez tirando a coragem do âmago, foi até Rodolfo de mão estendida disparando, "você tá com raiva de mim, cara?", e talvez a conduta direta tenha desarmado nosso irado amigo. Não ouvi o que falaram um com o outro -citei cerveja e marijuana, mas havia também o rock pesado como som ambiente- mas acabaram abraçados como os velhos amigos que de fato eram. Do ódio retardatário Rodolfo transmigrou para a pura ternura. Vocês precisavam ver, já de madrugada, Rodolfo e Nelson, cheios de bebida, indo para casa um escorado no outro.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Limpeza urbana

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Aqui ontem as crianças brincavam, hoje só sobra o lixo. Montanhas disformes em sacos de plástico preto, tomando a calçada e avançando para a pista. Os ratos passam céleres: rápidos e leves, podem correr por sob seus pés sem que você perceba. Ao chegar ao ralo do bueiro, porém, se tornam cautelosos. Esticam o corpo cinza-amarronzado para dentro e desaparecem no escuro. A cauda continua à vista, quinze centímetros pra fora, dura e balançante como uma antena, enquanto o dono esgueira-se esgoto adentro.

As baratas, também. De cada orifício de tampa de bueiro proliferam, marrons e brilhantes como que envernizadas. Tão grandes que arrastam consigo pedaços de comida maiores que o próprio corpo. Quanto mais abundância, mais ávidas ficam: correm para lá e para cá, frenéticas, vivendo o risco do esmagamento sob solas distraídas.

Do fedor não é preciso dizer. Alguém lembrou bem, "cheira à carniça", e ruas inteiras estavam tomadas por aquela fetidez. A nuvem de pestilência cobria quarteirões: o solo, ar e água, sujeira no mais alto grau, por onde quer que se olhasse, sem escapatória. "Essa é a 'cidade maravilhosa'", pensei comigo mesmo, prendendo a respiração e segurando o nojo, "o Rio de Janeiro das montanhas de lixo e baratas envernizadas".

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Astrônomo de coração partido

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Até gostaria de falar mais dela, mas de Mirna ficou apenas o efêmero: como a tempestade que logo em seguida dá lugar ao sol. Perguntar o que é o efêmero diante do universo, por outro lado, tem pouco valor prático. Como não? Até o universo cedo ou tarde se desmanchará. O universo e o amor de Mirna, um e outro de fragilidade insuspeita.

Falemos do universo, então. A profundeza cósmica lembra Mirna. É que os olhos dela são escuros e escondem buracos negros: a matéria e você são tragados. Ela e o universo, do caos à supernova, início e fim fechando um ciclo. E sempre com estrondo.

De Mirna sobrou apenas poeira cósmica.

A astrofísica moderna diz que todos somos feitos de sóis. A ciência se desdiz a cada instante, mas isso faz sentido. Só assim posso entender os olhos de Mirna, escuros e de buracos negros escondidos. E o astrônomo, de coração partido, preferiria estar perdido nas imensidões de Alfa Centauro.

domingo, 24 de junho de 2012

Coisa marginal

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Um hai kai de cinquenta versos
É roubo à regra.
Mas tem regra por acaso
Essa coisa marginal
Que chamam
poesia?

*

(Para saber o que é hai kai, haikai, haiku, ver aqui).

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O mau ator

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De Cecília por ora digo o seguinte: ela não amava a mim mas sim quem ela gostaria que eu fosse. Pois construiu, em sua alma de princesa tirana, um personagem de quinta e queria, eu, a representá-lo. De amante a ator: a Broadway dos corações enganados. Através de seus óculos cor-de-rosa eu recitava as falas que ela, como diretora teatral, empurrava em minhas mãos, e a pantomima prosseguia.

Ah, atores e dramaturgos desde a Grécia antiga! Sófocles perde. Com Cecília eu era apenas o que ela queria que eu fosse. Tentei romper o script; lágrimas. Tentei sair de cena; gritos e ranger de dentes. Tentei fechar as cortinas mas a plateia, uivando raivosa, lá estava exigindo que eu continuasse. E, pesaroso, eu deixava a ópera-bufa prosseguir, Cecília manipulando-me nas cordas como a um boneco.

Era preciso aproveitar a menor ocasião. Segundos para a troca de figurino- a oportunidade exata para fugir portas afora. Porque de Cecília por ora digo o seguinte: assim você não, você não pode ser feliz.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Noite em branco

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A noite em que Mirna disse "não sei, estou confusa", foi a mais longa de minha vida. Os físicos e astrônomos nos enganam: dizem que o dia tem vinte e quatro horas e que a noite ocupa metade disso. Esquecem de dizer que há noites que são duas, três, centenas de vezes isso; noites em que nos debatemos na cama impacientes, olhos abertos no escuro profundo. Noites em que voltamos ao relógio reiteradamente, ansiosos pela aurora. Quanto falta para o amanhecer?, nos perguntamos, quanto falta para Mirna?

Há noites assim, na história dos homens. Os jovens medievais, quando se sagravam cavaleiros, passavam a noite anterior à cerimônia em vigília rezando na capela. As horas noturnas antes da ordem de ataque, no campo de batalha. O atleta na véspera de uma competição importante. Até que se chegue ao exemplo da vigília por excelência, a agonia bíblica no jardim das oliveiras.

Noites em branco. Tão antigas quanto a Humanidade.

A noite em que Mirna disse "não tenho certeza, estou mal" durou exatamente quatrocentos e trinta e oito horas, mil e novecentos e treze minutos e setecentos e cinquenta e nove segundos. Talvez mais, pois o sol nunca demorou tanto a nascer como naquela ocasião. As noites polares duram um semestre. Mas mesmo que tarde, o dia vem sempre. Já de Mirna, eu nada sabia, não poderia saber se meu sol nasceria de novo.

sábado, 9 de junho de 2012

Oceanírico

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Já sonhei muitas vezes com amplidões marítimas, então aquele sonho não foi exatamente algo inusitado. Para onde quer que se olhasse, só se via mar: água tomando tudo, ruas e casas, igrejas e cemitérios, puteiros e tribunais. Um tsunami intenso, resoluto- e limpo. As águas eram de um azul-leitoso claro, suaves, como só águas de sonho podem ser. E tampouco eram águas de fúria. Ao contrário, cobriam a Humanidade com um quê de toque materno, como um cobertor cálido e amoroso.

Vocês já tiveram sonhos assim? Para onde quer que se volte os olhos, a imensidão das águas. A vastidão azul-leitosa, tão ampla que -paradoxo!- dá claustrofobia. O mundo como o conhecemos afogado, Atlântida redescoberta, o Rio como cidade submersa, em "Futuros Amantes" de Chico Buarque. O líquido superando o sólido. A água vence o concreto.

Estar cercado de águas, como uma ilha humana, não é uma sensação ruim. Os analistas que interpretem o simbolismo. A vida veio das águas, a evolução darwiniana nos mostrou. A expressão "oceano primordial" -não é um termo meu- está ecoando em minha cabeça nesse exato momento e talvez seja isso mesmo, a nostalgia atávica do oceano primordial.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Quando me disseram que ele desistiu

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Quando me disseram que ele desistiu, eu pensei, "que seja". Não se pode fazer muita coisa senão dar de ombros numa situação como essa. Apesar do que dizem, a derrota, assim como a vitória, só podem encontrar sua verdadeira dimensão dentro do derrotado ou do vitorioso, e nós de fora somos pálidos espectadores, por mais que nos solidarizemos. Dor e alegria são muito pessoais; por mais que tentemos sinceramente, só conseguimos arranhar a superfície. E ele desistiu, me falaram, e muito pouco podia ser feito disso.

Naturalmente, eu precisava refletir a respeito. Até mesmo desci e fui pra rua e, como fazia sol, perambulei pelo calçadão à beira-mar. E me coloquei a pensar sobre o que significa, precisamente, desistir nesse contexto. Faria sentido dizer que o detento que foge da penitenciária "desistiu" da cadeia? Que o faminto, ao comer, "desistiu" da fome, ou que o doente, ao se medicar, "desistiu" da doença? Porque a questão é simplesmente esta: o que nos obriga a algo se, decididamente, não há motivo plausível para tal? Desistir me parece uma palavra muito equivocada. O errado, ao contrário, está em insistir, na cadeia, na fome, na doença.

Há que deixar a natureza fazer seu trabalho, a natureza, que engloba esse mar e esse sol. Mas a natureza nos deu livre-arbítrio, que é conspurcado pela culpa e toda castração que a religião nos deixou. Uma vez saciados, pedimos a conta: é de uma simplicidade tal que talvez choque. Mas por que continuar no jogo, se já não há prazer no jogar? Se as fichas já acabaram e a banca levou tudo? Talvez o segredo esteja em ter esperança de que a maré se reverterá na próxima rodada. Mas a vida escoa enquanto aguardamos o golpe de sorte que não vem.

Dito isso, de olhar o mar e o sol, me dei por satisfeito. Voltei ao cotidiano, mas não gostaria, jamais, que dissessem de meu amigo que se tratava de um covarde, por ter desistido. Não direi que, ao contrário, covarde seja quem insiste. Não chego a tanto. Mas me parece óbvio que encostar o aço frio na própria têmpora não é, decididamente, coisa para fracos.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Arquiteto de sonhos

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Eu era um arquiteto de sonhos, enquanto aguardava por Mirna na mesa de bar. O futuro todo era erguido, de casas a filhos, de carros a empregos. Mirna simbolizava a mudança-em-si: o cenário diante de nós era novo. E eu, como um malabarista, rodopiava no ar tantas visões a se construir enquanto aguardava na mesa de bar.

Eu não imaginava o que era fantástico: repudiava as quimeras. Ao contrário, o que projetava era concreto, realizável, eu diria, sensível ao tato. Castelos no ar para fincá-los em terra firme. Queria aquilo que se consuma. Para longe de mim com as utopias, naquela mesa de bar, e gole sobre gole eu projetava nossas vidas.

Eu era um arquiteto de sonhos, então, mas de sonhos palpáveis. Pouco depois, contudo, aprendi que Mirna, também ela, nada mais era que ilusão fugaz.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Febre

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Uma das coisas mais legais, se é que se pode falar assim, num surto de febre, são os calafrios. Eu gosto de sentir frio e talvez esse seja um complexo de morador dos trópicos escaldantes, e é claro que os calafrios de febre não são o frio natural, mas é engraçado tremer debaixo das cobertas enquanto está sol claro lá fora. De resto, é tudo fraqueza e prostração: mesmo pensar exige esforço hercúleo, e levantar pra comer, então, nem Hércules em pessoa.

Nesse dia a febre estava alta, logo, e os calafrios devidamente presentes. Mas não havia cama nem cobertas: estava no escritório e ainda tinha um compromisso. Ir ou não ir? Esqueçamos o dever? Mas era importante, e lutei -já não mais Hércules, mas também Perseu e Teseu e a mitologia toda- contra tudo (esqueci de citar as dores nas juntas) e rumei para o compromisso.

Foi aí que percebi uma coisa, enquanto chegava à Cinelândia. Conforme eu andava mais e mais, a sensação de mal-estar diminuía. O ato de andar deixava para trás febre alta e dores e catarro e calafrios. Experimentei apertar o passo, e vi que quanto mais me movimentava mais melhorava. Os médicos receitam repouso, mas me ocorre que na morte já há repouso o suficiente, e que estar vivo é justamente questão de movimento. O ato soberano de caminhar deixa para trás todas as mazelas, e então pensei como aquela lição era bonita, como o ato de continuar andando deixa pra trás as dores.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A Lagoa pela janela do quarto

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Lembro que olhar a Lagoa pela janela do quarto era bom. Um grande espelho de prata, ao fundo amplas montanhas e as antenas piscando. As luzes causaram susto na primeira noite que lá dormimos, na sala ainda desorganizada da mudança: piscando intermitente nas paredes, davam um ar espectral. Mas tudo compunha o mesmo grandioso cenário.

Dos anos em que morei lá, a primeira vez que olhei a Lagoa pela janela foi especial. Era já entardecer, o espelho de prata meio áureo-brônzeo, pessoas lá embaixo passando em cooper. E, na cobertura do prédio vizinho, uma moça -morena e ainda adolescente, short e top minúsculos- recolhia as roupas no varal. Era a empregada doméstica da casa, pela desenvoltura com que lidava com as tarefas, do varal passando à vassoura e daí para os cuidados com os vasos de planta.

Por acaso há prazer voyeurístico maior, que observar uma moça realizando afazeres domésticos tendo ao fundo o sol se pondo sobre a Rodrigo de Freitas argênteo-áureo-brônzea?

Tudo compunha o mesmo grandioso cenário, a moça, amplas montanhas, antenas piscando. E o cooper lá embaixo, se você prefere visões mais triviais.

sábado, 19 de maio de 2012

Fantasmas forenses

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Já passava das dezenove horas mas ainda havia transeuntes, o centro do Rio é assim de sol a sol. Não para nunca. Mas a Avenida Antônio Carlos, especificamente na altura do prédio do Fórum, estava às moscas. E muito escura: talvez um poste estivesse queimado, mas era um breu profundo, intensificado pelas copas das árvores. Enquanto descia pelo quarteirão, olhava o prédio de instalações modernas. Mesmo no escuro era imponente, menos do que seria se fosse um austero "Palácio da Justiça" barroco, mas ainda assim tinha sua majestade, o que é natural por se tratar da sede de um Poder.

Pois eu descia o quarteirão à sombra do Fórum, entre árvores pela calçada escura.

Muitas luzes lá dentro: os serventuários, como o centro do Rio, não param. Daí me pus a pensar em tantos processos que lá dentro repousavam, e então por acaso me vieram à cabeça histórias de cobiça e crime, de heranças e deserdações, de mágoas e rancores. Pensei nos assassinos citados diariamente, nos criminosos e pervertidos fichados, nas lágrimas e ranger de dentes, nos risos repugnantes dos oportunistas. Pensei em vaidade e em desespero, por ações perdidas por tão pouco, na insegurança dos jovens advogados e em clientes arruinados praguejando contra eles. Em condenações injustas, corrupção e má-fé. Pensei também em fortunas desfeitas e em imóveis perdidos, em ações de despejo e a angústia de não se ter aonde ir.

Pensei em tudo isso enquanto descia o quarteirão à sombra do Fórum. A calçada pareceu mais escura ainda, e as poucas árvores se avolumavam. Apertei o passo. Tive a impressão de passar por um local mal-assombrado, como um velho casarão, um antigo cemitério, apesar de toda a modernidade das instalações, engolidas, naquela hora da noite num centro do Rio que não para, pelo escuro que tomava a calçada.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Encostado nos carros no escuro da rua

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Encostado nos carros no escuro da rua, eu despejava ao celular tudo o que sentia, o tudo como expressão real, sensível (no sentido de tocável) do sentimento, "sentimento sensível", ficou ruim mas é isso mesmo. A redundância às vezes ajuda. E com Mirna eu era mais que redundante, era um disco em alta rotação, meu alfabeto não terminava no "z" pois voltava ao "a", o fim emendado no começo e tudo prosseguia ad infinitum.

Pois eu não me cansava de dizer que estava entregue. A entrega cabal do meu coração, vermelho e palpitante, nas mãos de menina. Um homem orgulhoso não pode entender o que é isso, o orgulho faz de tudo ridículo, mas quando a entrega é total nos despimos também do ridículo (aliás nos despimos tanto que sobra quase nada). Eu não me cansava de dizer que estava entregue, e repetia e repetia.

Pelo celular ela ouvia, ria e incentivava. Talvez a vaidade, de ter o coração de um homem em suas mãos, talvez o medo, de ter o coração de um homem em suas mãos. Mas nem um nem outro Mirna transparecia, e ouvia, ria e incentivava. E dizia que com ela estava sendo assim também.

Acho que foi um erro, lembrando hoje, ter reiteradamente repetido que estava entregue. Vaidade ou medo, não são sentimentos bons de estimular. Mas, e eu pensava essas coisas enquanto desligava o celular e caminhava para casa, uma vez entregue não se pode mais voltar atrás.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O poeta viajante

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muito bem assim, então
por ora
nada a fazer
senão
no saguão do aeroporto
escrever versos
em papel pardo

para trás já tudo
os versos não
estes leva-os consigo
na jornada
companheiros.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Paranoia na noite

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Precisei informá-lo mais uma vez: "-Não, o sujeito não está olhando pra você". Porque Rodolfo, quando encasquetava com algo, era capaz de passar a noite remoendo o assunto. Daí estava lá agora, em pé, tenso, olhando com o rabo de olho para o suposto adversário. O suor escorria pelas têmporas, a testa de veias dilatas brilhando como nunca. A cara de um verdadeiro assassino, e o suposto adversário, totalmente alheio a tudo, afinal o sujeito não estava mesmo olhando para Rodolfo.

Paranoia. O que fosse, não sou psiquiatra.

"-Rodolfo, relaxe. Dê seu copo pra eu encher". Álcool é relaxante, não é mesmo? Despejei mais cerveja para ele, que bebericava sem perder o suposto adversário de vista. E tudo corria na mesma, o barulho na rua defronte, a rua movimentada de bares onde estávamos, caixas de som pululando ao redor. Gente de todos os matizes. Pensando bem, não era mesmo um ambiente relaxante, com o álcool que fosse. Paranoicos como Rodolfo precisam de momentos serenos, como um chá das cinco com a vovó ou uma ária no Theatro Municipal, se é que alguém em sã consciência (repetindo, não sou psiquiatra) consegue imaginar Rodolfo num chá das cinco ou ouvindo ária.

O trabalho artesanal, entre os soldados orientais do passado, era incentivado. Para contrabalancear com toda a violência da guerra, um toque de sensibilidade em nervos graníticos. Arte acalma, álcool acalma, tudo acalma, e olhar as meninas passando também acalma bastante, e é o que Rodolfo deveria fazer ao invés de se preocupar com um suposto adversário lhe encarando.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Refresco aguado enquanto espero ela

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Esperava a ligação dela, impacientemente. Passado o encontro, com companheiros de uma força política, a ansiedade, esquecida momentaneamente, voltou com tudo. Despedi-me dos companheiros e tomei lentamente o rumo de casa, conferindo de minuto a minuto o celular, esperando o chamado, o recado, algo qualquer. Cinelândia, Passeio Público. E a fome (dela também, mas me refiro à do estômago), e parei em uma padaria. Salgados e pães muito pouco apetitosos, alimento pouco apetecível ao espírito; mas era tarde e outras opções não havia, era preciso mandar algo pra dentro, saco vazio não para em pé. Pedi um sanduíche de presunto, presunto azedo, percebi já nas primeiras mordidas, empurrei pra dentro o máximo que consegui ajudado pelo refresco aguado de maracujá. E retomei o rumo de casa.

Nada de Mirna dar notícias. Subia as ruas como um bêbado, cambaleando agora não só de fome como de enjôo, o sanduíche caíra muito mal no estômago. Mas é só o celular tocar e tudo passará, tem sido assim com ela, as pequenas coisas se tornam ainda menores quando se fala com Mirna. Mirna, a menina com o dom de apequenar todo o resto. Eu? O contrário, com ela me sentia grande.

Já em casa, no quarto. Recomposto, banho tomado, estirado na cama- e é agora que Mirna entra em contato, a mensagem direta na tela de brilho suave do celular, "você vai me ligar?", como não, minha menina, tudo se apequena outra vez e já estou cá discando os números.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

De funções vitais

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Vão me perguntar se valeu a pena e direi, claro, óbvio que sim. O final foi seco: não quero mais, ela disse, ok, respondi. Era mentira -minha- mas nada diferente podia ser dito: o amor deve fluir, não serei eu a segurá-lo. Seca, muito seca -ela- e em segundos tudo que se construía em pensamento -filhos e casa, e empregos e carros- tudo desapareceu. Nenhum vestígio. Não quero mais, ela disse, ok, respondi.

Você já fugiu disso? Te chamarei: és covarde. Não me leve a mal. Mas ter medo disso é ter medo da chuva raios sol vento onda pássaros árvores meteoros folhas flores neve. É ter medo da vida, enfim, e vida que se vive com medo da vida não é vida senão morte.

Você tem medo de respirar?

De comer?

De domir?

Também não deveria ter de amar. É outra função vital. Sem isso, não vivemos.

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