This story is fiction, and any events or near-similar events in actual life which did transpire have not prejudiced the author toward any figures involved or uninvolved; in other words, the mind, the imagination, the creative facilities have been allowed to run freely, and that means invention, of which said is drawn and caused by living one year short of half a century with the human race . . . and is not narrowed down to any specific case, cases, newspaper stories, and was not written to harm, infer or do injustice to any of my fellow creatures involved in circumstances similar to the story to follow.


(Charles Bukowski, "The Murder Of Ramon Vasquez")

domingo, 27 de março de 2011

O jardim nos fundos

Um comentário:
Isso foi quando eu morava em Copacabana, isto é, no período antediluviano. Havia uma praça defronte ao apartamento, onde costumávamos brincar, muitos brinquedos e muitos mendigos, o primeiro contato, aos olhos infantis, com a miséria. Mas brincávamos e ignorávamos tudo, em meio a escorregas, balanços e aquele treco em que subimos, parecido com uma teia de aranha, uma profusão de tubos de metal formando uma espécie de gaiola.

O parquinho era legal, mas dava sempre vontade de variar. Tinha outro alguns quarteirões depois, mas também enjoava às vezes (apesar do magnífico castelo, tipo medieval, no qual era possível subir e contemplar o parque das amuradas, onde entrávamos esperando encontrar, naquela excitação infantil, cavaleiros em armadura). Nesse parque do castelo, aliás, eu sofri a primeira ameaça da minha vida: um menino mais velho disse que "quebraria minha cara" caso eu pisasse em seus carrinhos, espalhados pelo chão de terra. Quantas vezes eu ouvi a mesma bravata, ao longo da minha existência, perdi a conta- mas aquele foi o primeiro contato com o universo belicoso do ser humano.

E tinha também a praia, claro. Mas isso tudo enjoava.

"-Ah, vamos dar uma volta", disse a garota que tomava conta da gente. "Babá", não! Eu já era grande...E minha mãe sorria e me dava razão, mas deixava escapulir, minutos depois, "-chama sua babá...". "-Vamos dar uma volta", disse a moça de novo, e todos nós abraçamos imediatamente a ideia, felizes. Chega de ficar em apartamento, há um mundo lá fora- com teias de aranha de metal e cavaleiros andantes em armadura! E carrinhos a serem pisados, mesmo que isso nos custasse uma surra...

Só na portaria é que vimos que estava chovendo. E agora? Pro parque da frente não dava, pro parque do castelo também não, praia muito menos...Olhei choroso pra babá, digo, pra moça que tomava conta da gente. E ela, tentando nos animar: "-Ah, vamos andando...Pra qualquer lugar". Só que a chuva apertou, e precisamos buscar abrigo o mais rápido possível. Acabamos entrando na galeria de um prédio, tipo comercial, que providencialmente estava aberto, acessível. O prédio, lá dentro, era como qualquer outro- salvo uma portinha no fundo que, na nossa curiosidade, quisemos explorar.

"-Psiu!", disse a moça severa, cônscia de sua função, não querendo perder de vista aqueles moleques traquinas. Mas nem precisava ter nos chamado a atenção: paramos estupefatos, olhando aquele mundo à nossa frente. Porque nos fundos do prédio, além da porta, tinha um jardim com brinquedos. Um parquinho como aquele, escondido daquele jeito, era bastante inusitado. Mas quisemos explorar e, como ninguém barrou a passagem, corremos para os brinquedos. A própria moça ficou encantada, reparando o lugar bucólico, verde, pequeno mas aconchegante. Para nós, as crianças, os brinquedos eram os mesmos de sempre, mas tinha algo de mágico naquele lugar. A chuva tinha parado, e o cheiro de terra molhada daquele dia era como um perfume de fada. Brincamos a tarde inteira. Daí começou a escurecer e a moça nos levou de volta pra casa.

Não me lembro por que, mas nunca mais voltamos ao jardim do prédio. Acho que a moça que cuidava de nós foi dispensada, sendo substituída por outra que ligava menos para jardins escondidos em fundos de prédios.

Já barbado, passei um dia por aquela velha rua, e tive a impressão de ter identificado o prédio do jardim oculto. Estava modificado, com certeza passou por inúmeras reformas ao longo desses anos. Senti uma vontade imensa de entrar e rever aquele lugar mágico, mas percebi que papel ridículo eu estaria fazendo: o de um homem adulto encantado com brinquedos de criança. Hesitei um pouco mas acabei passando direto, sem parar.

Mas vou ser sincero, o porquê de não ter parado: a sensação de encantamento daquele dia foi tão intensa, que a impressão que se dá é a de que nada daquilo foi real.

Talvez, se voltássemos agora lá, neste exato momento, ninguém possa nos dar as devidas informações. Mesmo os porteiros mais antigos irão coçar a cabeça, intrigados, e dizer que nunca ouviram falar desse tal jardim nos fundos do prédio. O síndico vai dizer a mesma coisa, e talvez o morador mais velho de todos vá afirmar, de pés juntos, que nunca houve um jardim nos fundos do prédio.

Pensando hoje, olhando pra trás, talvez tenha sido mesmo imaginação de criança.

Ou então era uma porta para a Terra do Nunca, se abrindo a cada 100 anos.

segunda-feira, 21 de março de 2011

"Canis moribundus"

2 comentários:
O cachorro arfava e arfava. Dava dó: era osso puro, meio palmo de língua para fora, um olhar de incompreensão indescritível para nós. É por isso que acho o sofrimento animal pior que o sofrimento humano (sim, eu sei que o homem também é um animal): o bicho não entende, não compreende porque sofre. O homem não: é a dengue, imbecil!, a febre, a disenteria, o escorbuto, o câncer, que diabos, é a AIDS! E o homem entende, sofre mas entende, sabe do que se trata. Tá na internet, se quiser tirar dúvidas. Já o bicho é diferente. Tanta dor e sofrimento não entram em sua pequena mente, sente toda aquela dor mas, em sua cabecinha pouco evoluída, darwinianamente falando, não pode sequer cogitar o porquê de sofrer.

E Rex estava lá, as costelas à mostra. Se tem algo que me dói, nos "Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia Márquez, é a senilidade inexorável, atingindo a todos os personagens. O meu velho cachorro era presa da mesma doença senil, da mesma decadência da idade. Há coisa mais triste que a velhice? Joelhos que não se aguentam, dedos que mal se fecham, voz débil...É como voltar à infância pelo contrário. A diferença é que a infância tem vida diante de si, já a velhice, morte.

Ganiu fraco. Até para isso fazia esforço.

Mas não era só a idade que estava acabando com ele. O veterinário mostrou no ultrassom: "-Olha, o tumor", e na tela apareceu aquela monstruosidade. "-Olha, outro", e ia passando a máquina pelo corpo do bicho. Sim, idiota, é um tumor, e outro e outro e outro. É por isso que estou no veterinário, não é mesmo? "-Olha..." Você não trata exatamente dessas coisas? Não é para isso que vocês servem?

"-Olha...", e o veterinário explicava desajeitadamente. "-Olha...", ok, ok, já entendi. Não tem cura. O paciente é irracional, eu não.

Pego Rex no colo. Pesa quase nada. Muito fraco para sair sobre as próprias patas. Me dirijo à saída.

"-Olha...A conta...".

Mercenário.

Em casa, a família debatendo. EUTANÁSIA JAMAIS. É um homicídio na minha opinião. Sim, "homicídio", "homi", homo, homem, "cídio", caedere, matar. Rex não era um homem, mas, porra, para mim era como se fosse. Fora de questão. Tiver que morrer, e realmente irá -e o irmão mais novo fez cara de choro nessa parte- que fosse naturalmente. E assim fomos tocando a vida, tentando fazer os últimos dias de Rex os melhores possíveis: curtos passeios, na medida certa para não extenuá-lo, a comidinha mais saborosa (pra quê dieta, quando se é moribundo?), brinquedos e brincadeiras- até um idoso como Rex gosta de diversão.

É claro que isso teria um fim muito em breve. Cada vez mais fraco, os ganidos já gemidos de moribundo. Pobre Rex.

Fui trabalhar e lhe dei um beijo de despedida. Até mais tarde!

À noite, voltei para casa. A família toda na sala, chorando, a mãe de olhos vermelhos. Mas o que aconteceu? O que houve?

"-Olha..."

quinta-feira, 10 de março de 2011

I wanna be a rockstar

Um comentário:
Há pessoas que, sentimos, simpatizam de cara conosco. Por mais diferentes que sejamos, por mais que, à primeira vista, não tenhamos nada em comum: ainda assim, essas pessoas vão com nossa cara de primeira. Foi o caso dele desde o primeiro momento, largos sorrisos e comentários espirituosos, em tudo procurando o meu aval. Até porque não havia muita escolha: como um dos frontmen da banda que eu era, ele tinha, mesmo que não quisesse, que me aturar.

Mas não era nada forçado. Percebi isso no dia em que, no intervalo de um ensaio da banda, eu e ele descemos para comprar cachaça e limão para caipirinha. Éramos (ainda sou) partidário da ideia de que banda de rock tem que ensaiar sob aditivos: o "sexo, drogas e rock 'n roll" é quase uma religião. Nesse dia, então, na fila do supermercado, enquanto o resto da banda nos aguardava lá em cima impaciente, ele abriu sua vida, literalmente abriu sua vida para mim. Eu percebi que daquele dia em diante eu seria seu melhor amigo, mesmo que ele próprio não se desse conta disso.

E o ensaio, quando voltamos...Quando dizem que o rock é louco, não é licença poética. É louco mesmo. Some a isso caipirinha com limão mal amassado e erva à vontade: o meu amigo flanava durante o ensaio. Teria Jim Morrison -ou Hendrix, ou Janis, ou Barret, ou Cobain, ou qualquer outro doidão do rock- baixado nele? Com a pandeirola em mãos, acompanhava divinamente todas as músicas que tocávamos, dançando como em transe, olhos e braços para o alto. Ficou excelente! Nem se quiséssemos teríamos tido esse efeito.

Mas todo esse álcool e erva cobram seu preço. Ninguém enche os cornos impunemente. No caso dele, foi um aquário, um mísero aquário com algumas tartarugas verdes, daquelas aquáticas. Cismou que uma delas estava...se afogando! Não riam, foi isso mesmo.

Armou o caos: era urgente salvar a tartaruga. Urgente! Isso importava mais que o ensaio de uma banda de garagem qualquer. Desligou os amplificadores, tomou as baquetas do baterista, queria arrancar os baixos e guitarras de nossas mãos. "-A tartaruga está se afogando!", balbuciava, e eu me vi em uma das situações mais burlescas de toda minha vida. Seguramos o louco, é claro: era forte, mas dócil. Não estava agressivo, apenas desesperado pelo destino inexorável que se desenhava para a pobre tartaruguinha aquática, se afogando no aquário. Um de nós gritou alto, "-Segura a onda!", mas logo em seguida nos preocupamos com os vizinhos: vai que chamariam a polícia para enquadrar esse bando de jovens rockeiros e maconheiros.

O dono da casa (e consequentemente das tartaruguinhas) perdeu a paciência. Sem largar o contrabaixo, olhou nosso amigo nos olhos, a meio palmo de distância, e disse numa voz baixa, entre os dentes: "-Se a tartaruga morrer ou não, é o destino dela...!", frisando o "destino".

O destino da tartaruga. De punk rock aos fatalismos da existência. Não era mais Joey Ramone o tema daquela tarde, mas os próprios desígnios misteriosos da vida. Que ensaio.

O efeito daquela rápida bad trip passou (quem sabe essa profunda reflexão filosófica tivesse servido de banho frio) e pudemos retomar o ensaio. Mas o nosso amigo já não estava tão sublime assim, a pandeirola mais tímida em suas mãos.

Os meses se passaram, vários e vários ensaios depois. Daí veio a faculdade e todos nós, de um modo ou de outro, "encaretecemos". Pagar contas e trabalhar, preferencialmente com uma solene gravata no pescoço: e ei-nos todos velhos em corpos de jovens.

Eu estava no bar quando ouvi falar dele pela última vez. Passou um conhecido em comum, apressado- chamei-lhe e perguntei pela turma. "-Não tá sabendo? Ele tá debaixo da terra". Debaixo da terra, assim mesmo, direto ao ponto. Nosso amigo havia sido pego num fogo-cruzado, em uma favela da região, numa incursão policial. Era o espírito rocker: frequentar lugares perigosos. Ou talvez a busca por mais erva, não importa mais.

Saiu de cena de forma punk. Foi coerente, não se pode negar. Encontrou seu destino, ninguém foge dele, nem as tartaruguinhas.

Ah, sim. Viveram ainda muito tempo. Nenhuma delas se afogou.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O mar me roubou ela

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Ela estava numa posição defensiva: sentada na areia, os braços envolvendo os joelhos. Fazia frio e a maresia trazia um cheiro gostoso de mar. Eu estava um pouco atrás, também sentado abraçando as pernas. Meio que não sabia o que dizer. Como romper a postura defensiva, como desviar a atenção dela: das ondas do mar para mim.

"Olha", ela disse súbito, sem se virar, "não tenho tido vontade de estar com ninguém". Para bom entendedor, meia-palavra basta. Não respondi: o único barulho era o das ondas. Há pouco tínhamos nos amassado, ainda no calçadão. Mas foi sentar na areia, foi sentir a brisa marítima e ouvir as ondas, que ela entrou num estado de torpor, algo catatônico. Pensando em sei lá o quê- mas não era em mim.

Fui trocado pelo mar.

Ou era a lembrança de outro sujeito, talvez areia molhada a fizesse lembrar dele.

"Eu entendo", respondi. "Também estou nessa fase", continuei, e era mentira, porque o que eu mais queria era retomar o amasso, língua com língua e mãos pelo corpo, como fizemos há pouco. Mas, reparem bem: não era mera luxúria. Tesão há sempre (tenho 19 anos recém-completos!), mas havia algo mais me cutucando. Apaixonado, não digo, encantado, enfeitiçado, maravilhado- isso eu digo. E o vento e a maresia também mexeram comigo, daí deu de repente vontade de chorar: entrei no catatonismo, que nem ela. Também a troquei pelo mar, mas olhem que coisa esquisita, nessa troca pelo mar ela também estava presente, tipo, não a queria mais e sim ao mar, mas o mar que eu queria eu queria por causa dela.

Coisa confusa. Só tenho 19 anos, não devia ser profundo assim. Deixemos que o mar seja profundo. Eu, não.

Olhei pra ela de novo. Esqueceu-me de vez: o mar, o mar, o mar, eu não era nada. Zero a zero. Merda.

Cansei daquilo e me levantei, batendo na bunda com as mãos para tirar a areia úmida que grudara. Soltei um "fui!" seco, solene, orgulhoso como um rei babilônico, e tomei o rumo do calçadão. Mãos no bolso, sem olhar pra trás, uma bruta ereção frustrada dentro da calça.

Ela, nem aí. Sentada na areia abraçando os joelhos, era atenção só para o mar.

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