This story is fiction, and any events or near-similar events in actual life which did transpire have not prejudiced the author toward any figures involved or uninvolved; in other words, the mind, the imagination, the creative facilities have been allowed to run freely, and that means invention, of which said is drawn and caused by living one year short of half a century with the human race . . . and is not narrowed down to any specific case, cases, newspaper stories, and was not written to harm, infer or do injustice to any of my fellow creatures involved in circumstances similar to the story to follow.


(Charles Bukowski, "The Murder Of Ramon Vasquez")

quinta-feira, 10 de março de 2011

I wanna be a rockstar

Há pessoas que, sentimos, simpatizam de cara conosco. Por mais diferentes que sejamos, por mais que, à primeira vista, não tenhamos nada em comum: ainda assim, essas pessoas vão com nossa cara de primeira. Foi o caso dele desde o primeiro momento, largos sorrisos e comentários espirituosos, em tudo procurando o meu aval. Até porque não havia muita escolha: como um dos frontmen da banda que eu era, ele tinha, mesmo que não quisesse, que me aturar.

Mas não era nada forçado. Percebi isso no dia em que, no intervalo de um ensaio da banda, eu e ele descemos para comprar cachaça e limão para caipirinha. Éramos (ainda sou) partidário da ideia de que banda de rock tem que ensaiar sob aditivos: o "sexo, drogas e rock 'n roll" é quase uma religião. Nesse dia, então, na fila do supermercado, enquanto o resto da banda nos aguardava lá em cima impaciente, ele abriu sua vida, literalmente abriu sua vida para mim. Eu percebi que daquele dia em diante eu seria seu melhor amigo, mesmo que ele próprio não se desse conta disso.

E o ensaio, quando voltamos...Quando dizem que o rock é louco, não é licença poética. É louco mesmo. Some a isso caipirinha com limão mal amassado e erva à vontade: o meu amigo flanava durante o ensaio. Teria Jim Morrison -ou Hendrix, ou Janis, ou Barret, ou Cobain, ou qualquer outro doidão do rock- baixado nele? Com a pandeirola em mãos, acompanhava divinamente todas as músicas que tocávamos, dançando como em transe, olhos e braços para o alto. Ficou excelente! Nem se quiséssemos teríamos tido esse efeito.

Mas todo esse álcool e erva cobram seu preço. Ninguém enche os cornos impunemente. No caso dele, foi um aquário, um mísero aquário com algumas tartarugas verdes, daquelas aquáticas. Cismou que uma delas estava...se afogando! Não riam, foi isso mesmo.

Armou o caos: era urgente salvar a tartaruga. Urgente! Isso importava mais que o ensaio de uma banda de garagem qualquer. Desligou os amplificadores, tomou as baquetas do baterista, queria arrancar os baixos e guitarras de nossas mãos. "-A tartaruga está se afogando!", balbuciava, e eu me vi em uma das situações mais burlescas de toda minha vida. Seguramos o louco, é claro: era forte, mas dócil. Não estava agressivo, apenas desesperado pelo destino inexorável que se desenhava para a pobre tartaruguinha aquática, se afogando no aquário. Um de nós gritou alto, "-Segura a onda!", mas logo em seguida nos preocupamos com os vizinhos: vai que chamariam a polícia para enquadrar esse bando de jovens rockeiros e maconheiros.

O dono da casa (e consequentemente das tartaruguinhas) perdeu a paciência. Sem largar o contrabaixo, olhou nosso amigo nos olhos, a meio palmo de distância, e disse numa voz baixa, entre os dentes: "-Se a tartaruga morrer ou não, é o destino dela...!", frisando o "destino".

O destino da tartaruga. De punk rock aos fatalismos da existência. Não era mais Joey Ramone o tema daquela tarde, mas os próprios desígnios misteriosos da vida. Que ensaio.

O efeito daquela rápida bad trip passou (quem sabe essa profunda reflexão filosófica tivesse servido de banho frio) e pudemos retomar o ensaio. Mas o nosso amigo já não estava tão sublime assim, a pandeirola mais tímida em suas mãos.

Os meses se passaram, vários e vários ensaios depois. Daí veio a faculdade e todos nós, de um modo ou de outro, "encaretecemos". Pagar contas e trabalhar, preferencialmente com uma solene gravata no pescoço: e ei-nos todos velhos em corpos de jovens.

Eu estava no bar quando ouvi falar dele pela última vez. Passou um conhecido em comum, apressado- chamei-lhe e perguntei pela turma. "-Não tá sabendo? Ele tá debaixo da terra". Debaixo da terra, assim mesmo, direto ao ponto. Nosso amigo havia sido pego num fogo-cruzado, em uma favela da região, numa incursão policial. Era o espírito rocker: frequentar lugares perigosos. Ou talvez a busca por mais erva, não importa mais.

Saiu de cena de forma punk. Foi coerente, não se pode negar. Encontrou seu destino, ninguém foge dele, nem as tartaruguinhas.

Ah, sim. Viveram ainda muito tempo. Nenhuma delas se afogou.

Um comentário:

  1. Sua habilidade narrativa é gritante! Adoro, é muito gostoso de ler. Quando nos damos conta, o texto já chegou ao final. Muito legal esse novo espaço, gostei de descobri-lo. Voltarei sempre.
    Beijos!

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