This story is fiction, and any events or near-similar events in actual life which did transpire have not prejudiced the author toward any figures involved or uninvolved; in other words, the mind, the imagination, the creative facilities have been allowed to run freely, and that means invention, of which said is drawn and caused by living one year short of half a century with the human race . . . and is not narrowed down to any specific case, cases, newspaper stories, and was not written to harm, infer or do injustice to any of my fellow creatures involved in circumstances similar to the story to follow.


(Charles Bukowski, "The Murder Of Ramon Vasquez")

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A viagem da lua

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"Quando me sinto mal sinto uma dor aqui", e ele apontou pro lado esquerdo do flanco, o fígado, o pâncreas, sei lá, nada entendo de anatomia. "É assim mesmo", eu falei, "isso se chama SOMATIZAR", bem pronunciado, pois ele certamente nunca ouvira aquela palavra. "É quando o corpo é afetado pelo emocional", e ele fez careta e mais não disse.

Pro diabo dores no corpo. O mundo inteiro é uma grande chaga: dor por toda parte. Mas não disse isso a ele, ia botar culpa na bebida ou, pior ainda, na amargura pela derrota do meu time.

"Ei, conversou com ela?", perguntou, "e aí?". E aí que não deu em nada, tiro n’água, ele fez careta de novo, ao menos você tentou né, é, e mais não disse.

"Ei, cara, é a dor de novo, acho que deveria parar de beber", e apalpou o local, e fez careta de novo, e mais não disse. "Pare de beber", concordei, pare de beber e de respirar, e de comer também, acrescentei, e ele estranhou e expliquei, beber é uma necessidade humana, todas as culturas sempre beberam e beberam, às vezes é a única coisa que resta.

"Pô, cara, nada a ver, você tá viajando", fez careta mais nada dizendo.

Eu decerto estava viajando.

Olhei pra lua alva feito ovo já despontando. Viajávamos nós todos, a lua também, literalmente falando. Tudo se move, a via-láctea inclusive, não há nada estático. Viajamos.

Mas à pergunta, "para onde?", silêncio total.

Lembrei dela dizendo, "que vida difícil". Dei o último gole, fiz uma careta e mais não disse.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

"Ficaremos juntos", ela prometeu

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sei que ela está ali

como uma promessa a ser cumprida
aqui e agora
hoje ou amanhã ou depois ou para além
do que é infinito

por que não?

uma promessa feita
muitos ciclos de existência atrás
uma promessa feita
com outros lábios, outras vozes
em outros corpos que não estes

por que não?

há quem acredite
em promessas de outras vidas
por que não?

e hoje

ela aqui esperando
o momento
e eu também pleno juramento
todo certeza de que
aquilo prometido
há de se cumprir

o momento chega sempre
toda promessa se cumpre

(se se quebra, não era bem promessa)

mas quando se é verdadeiro
por que não?

ela espera e se consuma

dois mais dois quatro, ebulição gera vapor
eu e ela juntos
tenho certeza disso
como de que o sol nascerá amanhã
a promessa é a natureza que se cumpre

a promessa é só a verdade adiada

mas ainda eu, ansioso,

esperando que mais ciclos não venham
antes da promessa ser cumprida.

domingo, 20 de novembro de 2011

Sem beijo

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sim, é possível transas sem beijo na boca

não é em toda situação que se beija
há aquelas
por acaso as mais impessoais
prostitutas etc.
situações em que não se beija

não se perde muito da foda, verdade
penis in vaginam é sempre
penis in vaginam
mas transas sem beijo
sim, há várias sem isso
são uma coisa engraçada

lá embaixo fluidos e penetração
enquanto aqui em cima
puros
cândidos
os lábios
não se tocam.

virginais.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Chaos theory

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Ela vai embora, e fico estirado na cama. Deixou-me a sós com a poeira e os pensamentos. O quarto acaba por lembrar um cenário de guerra, não apenas pelo caos -não metafórico- do ambiente como pela batalha travada, essa prazerosa porém. Mas também caótica: o caos está sempre presente quando homem e mulher se encontram, e não é na ordem e na harmonia que se conciliam os corpos ofegantes.

Ela deixa nosso pequeno reino de caos e volta para sua vida.

Penso: ela não gostou. O caos foi demais pra ela, não apenas a poeira e os livros pelo chão, ou sequer as paredes descascadas e o cheiro dos cachorros: o caos do meu próprio coração outrora seguro mas hoje reconhecidamente frágil.

Há que juntar os cacos, pedacinho por pedacinho. Fosse cerâmica chinesa. Do caos dos fragmentos espalhados, podemos chegar lá: na paz beatífica. E talvez ela volte, para desarranjar novamente a ordem recém-conquistada.

Afinal, o caos ganha sempre. A ordem é a exceção: é quando Deus está distraído.

domingo, 9 de outubro de 2011

A musa canta nas horas mais impróprias

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Avenida Brasil
Rápido na van
Gelado de ar-condicionado
E música ruim

Escuro lá fora
Carros que passam rápido
E o pensamento nela
Nos neóns dos moteis

Preso no veículo
A caminho de casa
Como desabafar?
E os versos brotam

Sem papel, sem tinta
Contudo os reservo
Para o momento adequado
Deixo-os guardados

Não foram embora, os versos
Deposito-os cuidadoso
Até a hora chegar
De colocar no papel.

sábado, 24 de setembro de 2011

Telefonema

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Nos fundos da Igreja falo com ela, o único lugar, naquele centro de Rio de Janeiro, com um pouco de paz. Jamais colocaria a voz dela para disputar com buzinas e gritos, britadeiras e balbúrdia. E, naquela paz improvisada, ela fala em meu ouvido, e a distância acaba, e ela fala e o universo muda, doce mas não dócil, suave mas rascante. Ouço, falo, ela ouve e fala. "Te amo", digo antes de desligar, um silêncio de microssegundos e vem o "também te amo", e o universo, mudado, jamais volta a ser o que era.

Desligo o telefone. São os sapatos? Não, são nuvens que me carregam. "Eu também te amo", mas isso não resume toda a sabedoria hermética de todos os filósofos-santos-sábios-cientistas do mundo? Apenas essas palavras, eu, também, te, amo, e o segredo da vida se deu por realizado. Quero mais nada, preciso de mais nada.

Deslizo pela cidade. O trabalho continua, preciso ir ao fórum do Méier. Ok, continuemos a labuta. Mas o universo mudou, acho que me movo em outra dimensão, a sétima ou a oitava pós-Einstein, a dimensão para além de Alfa-Centauro, o lugar para onde o "também te amo" me enviou inexoravelmente.

Entro no restaurante, almoçarei antes do Méier. Olho o cardápio e tudo me parece mesquinho. Olho as mesas ao redor, olho a garçonete. Tudo me parece subitamente mesquinho. Olho novamente ao redor e me vejo, assomando em espírito, gritando alto para todos: "Os senhores precisam almoçar? Eu não. Isso é pequeno para mim. Já estou bem nutrido, 'também te amo' é alimento para a vida inteira!"

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Pobre de espírito

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-"A pior miséria é a espiritual", ele disse. "É olhar pro céu e ver a lua, mas não poder alcançá-la porque os pés estão enterrados na lama".

-"Mas quem é pobre de espírito quer alcançar a lua?", perguntei.

-"Claro. Assim como o pobre de grana olha o ouro do rico e quer pra si".

Bem pensado. O céu é um burguês avaro e queremos expropriá-lo de estrelas.

Uma nova ida ao freezer para pegar mais cerveja. Ela estava lá, dançando com os outros. Eu deveria dançar também se quisesse ter alguma chance, mas ficava cá ouvindo sobre assaltos ao céu.

-"Ei, traz pra mim também!", gritou o filósofo da varanda onde estávamos.

-"Escute, cara, não faz sentido isso que você falou", eu disse entregando a cerveja gelada. "Você está sofismando. O pobre de espírito sequer tem noção da beleza da lua. Olha pra ela e só vê um pedaço bobo de rocha flutuando. Sua comparação com pobres, ricos e ouro é inadequada".

Ele gargalhou, abrindo a lata sonoramente. Na sala transformada em pista o clima esquentava, e ela lá no meio dançando com os idiotas.

Eu continuei, disposto a provar meu ponto: -"O pobre REAL quer o ouro do rico porque sente uma necessidade REAL. O estômago ronca, o corpo sente frio, e o ouro serve para corrigir isso. Mas o pobre ESPIRITUAL não tem noção de sua fome, de sua necessidade. Olha pra lua e não vê nada de mais, prefere continuar na lama. Só iria querer a lua se tivesse conhecimento de sua riqueza, mas se tivesse conhecimento da riqueza da lua não seria mais um pobre de espírito. Portanto, você está sofismando". E também abri minha latinha.

Dessa vez ele me olhou sério, desceu outro gole, então riu baixinho pra si próprio. -"Vem cá", começou, "o estômago não sabe de sua fome, sabe? Mas é uma necessidade...O ESPÍRITO também sente essa necessidade. Mesmo que não saiba. E na maioria das pessoas não sabe mesmo". E mandou ver outro gole.

Silêncio. Ele terminou a lata e acendeu um cigarro, olhando pro povo dançando na sala. Continuamos o xadrez mental. Até que, por volta das 3 da manhã, desligaram o som e eu já estava empapuçado de cerveja.

Foi então que percebi ela, num cantinho escuro da parede, aos amassos com um indivíduo. Fiquei com cara de bunda, naturalmente, e o filósofo percebeu.

-"Pô, véio", ele disse me dando um tapinha nas costas. "-Perdeu esse tempo todo no papo furado aqui ao invés de chegar nela? Que merda, hein?"

Daí dei um soco nele. Pano rápido.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Banheiro interrompido

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Esvaziar a bexiga cheia de cerveja é um prazer às raias do sexual. Quanto mais apertados estamos, mais desce rasgando na hora de liberar, e vem aquele gemido de alívio, aquela agonia toda descendo dourado-cristalina vaso sanitário abaixo. Conforme o aperto até sorrimos satisfeitos ao final. "Às vezes uma mijada é melhor que uma gozada", dizia um amigo meu, e tirando o exagero tem um fundo de razão. Além de tudo é diurético! Como podem implicar tanto assim com a cerveja, esse nobre elixir?

Estava eu então, devolvendo aquela cerveja toda, quando sinto a portinhola atrás de mim se abrindo. "Que porra é essa", pensei, "será que não se pode mais mijar sossegado?" Naquele boteco não havia banheiro masculino. Era uma cabinezinha de nada, com uma espécie de porta de saloon na entrada, com espaço suficiente para apenas uma ÚNICA pessoa. E aquela ÚNICA pessoa, no momento, era EU.

Olhei pra trás, acabando de esvaziar a bexiga. Era um sujeito, entrando meio cambaleante. "Ô, tem gente", eu disse. O sujeito me olhou desorientado mas ignorou meu alerta: queria se espremer comigo na cabine, onde só cabia uma ÚNICA pessoa. Nem fedendo que ia dividir o mictório com outro cabra. Mas como já tinha acabado, seria infantil ocupar a cabine por picuinha. Assim, me espremendo com o invasor, saí de lá, cedendo o lugar. Mas como fiquei puto com aqueles maus modos, encarei o sujeito e perguntei:

- "Tu mora onde?"

O sujeito me encarou sem dizer nada.

- "Tu mora na Ladeira?", perguntei de novo.

A Ladeira, bem entendido. Ladeira dos Tabajaras em Copacabana, acesso ao Morro dos Tabajaras. O bar ficava quase aos pés da favela. Perguntar se o sujeito morava lá era, além de intimidá-lo, uma forma de me proteger: vai que morava mesmo lá e estava "garantido". Mas não respondeu, ficou me encarando confusamente e balbuciando coisas ininteligíveis.

Perdi a paciência e voltei para o balcão do bar, onde minha cerveja já esquentava. Leandro continuava lá no mesmo lugar. Conosco estava algo como uma princesa africana, alta, mais alta do que eu, alta e exótica: visual nagô dos espaços, afromarciana, astronáuticonigeriana, congocosmogônica. A variedade humana de Copacabana é assombrosa: apenas lá podemos beber cerveja com princesas yorubá-futuristas.

Conversávamos então os três, eu e Leandro próximos ao balcão, em um degrau mais alto, a Princesa Africana ao nível do chão, de costas para a rua. Já tinha até esquecido o incidente do banheiro, quando vejo o intruso lá, a poucos metros. Cochichando com outro indivíduo e olhando em minha direção.

- "Olha, foi aquele ali", sussurrou o intruso do banheiro para o comparsa. "Foi aquele ali", repetiu malevolamente com olhar lesado de réptil bêbado.

Qual o quê. Sou filho de Ogum Guerreiro. Mantive a dupla em meu campo de visão, de soslaio, e me afastei alguns passos de Leandro e da Princesa Africana. Deixei a garrafa de cerveja ao alcance da minha mão. Ao menor sinal de ataque, desceria aquilo com toda força nos cornos do primeiro que ousasse.

Podem vir, sacanas.

Não bastasse interromper minha mijada, ainda querem confusão?

Podem vir.

Leandro e a Princesa Africana conversavam animadamente, cigarro atrás de cigarro, virando suas cervejas, sem perceberem a tensão no ar. Acho que ninguém no bar percebia: eram apenas eu, olhando de soslaio e pronto para reagir, e o mala do banheiro com o comparsa.

- "Deixa, cara, esquece isso", o comparsa disse. Sussurrou com o outro mas pude ouvir.

Finalmente alguém com bom senso, pensei.

- "Deixa pra lá", o comparsa repetiu. O mala do banheiro, tendo perdido seu único apoio, olhou desorientado, pro comparsa, pra mim, pro comparsa de novo, e então abaixou a cabeça. Acho até que continuaram pelo bar, mas não tornaram a perturbar. Parei de prestar atenção neles, em todo caso. Estava perdendo a conversa com a Princesa Africana e, jesus, não é todo dia que se bebe cerveja com uma Princesa Africana.

sábado, 25 de junho de 2011

Amor de bordel

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Era o baixo meretrício, mas não que preferisse. O que o bolso podia, o que era mais perto. Chegar lá era perigoso, por meio de tantas vielas escuras, mas o baixo meretrício em si estava sempre animado e iluminado, um verdadeiro porto seguro: os cafetões não permitem balbúrdia em sua área. Uma vez lá era um gigantesco supermercado de fêmeas, todos os tipos, cores e padrões, ao cliente bastando escolher, mas os clientes também eram mercadoria, deixando lá semanalmente seus suados trocados de proletário. Elas por elas, todos satisfeitos.

Ela -a moça que ele escolheu- parecia voluptosa. Femme fatale da madrugada decadente. Mas uma vez acertado o preço, uma vez dentro do quarto, uma vez tirando a roupa, era apenas uma menina. 18 anos. Pediu para continuar de sutiã: estava amamentando, não queria espirrar leite no cliente. Criança gerando outra, o bebê com a avó enquanto a mãe-menina cumpria sua jornada noturna. O cliente aceitou. Estava pagando, podia exigir o que quisesse, mas deu de ombros. Então ele percebeu que ela tinha o corpo manchado, manchas desbotadas, tratáveis com qualquer pomada barata. Não ligou para isso, não era homem de ninharias. Se não refugou com a possibilidade de receber uma esguichada de leite, não iria ligar para uma pele desbotada.

Daí ela o abraçou passionalmente. Como uma namorada apaixonada. "Sua voz é linda", ela disse, "fala no meu ouvido". Ele tinha voz bonita mesmo. Achou graça e sussurrou qualquer besteira no ouvido dela. Risinhos, mais abraços. Beijo na boca seria muito: putas não beijam. Ela respeitava a regra, mas o abraçava, o apalpava como a um namorado.

Mas os hormônios apressavam as coisas. Ele não queria namoradas, veio por um motivo, e pagara por isso. Pouco, é verdade -afinal era o baixo meretrício- mas pagara. Nas cabines ao lado já começavam os gemidos inconfundíveis. Cabines, vejam bem, não quartos- era o baixo meretrício, afinal de contas.

E ela era profissional. Voltou a ser voluptuosa como lá fora, a força uterina redescoberta. E ele tomou posse do que lhe pertencia. Ao final esvaziou os bolsos e ela ainda pediu um "agrado", ele nunca soube dizer não, ia fazer falta ao longo da semana, mas ele nunca soube dizer não. Todos mercadorias, eu avisei.

No mês seguinte, com o salário de operário recomposto, voltou lá: mas apenas por ela, apenas por causa dela. Deu dezenas de voltas, mas não a encontrou em lugar nenhum. Pensou em perguntar por ela, mas teve vergonha. Qual era mesmo o nome daquele filme? "Uma linda mulher", que coisa cafona. Sentiu-se um Richard Gere piorado e voltou para casa. Ela também não era lá nenhuma Julia Roberts.

domingo, 8 de maio de 2011

Uma viagem de ônibus

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O ônibus descia veloz. Sem exageros, a velocidade normal naquelas circunstâncias, quando surgiu o outro, em sentido oposto, este sim muito, muito veloz. Ruas de mão dupla têm esse problema. Então veio o estalo, alto, e o pedaço do espelho raspando perigosamente pelo pescoço. Durou segundos, uma rápida comoção entre os passageiros -um e outro gritinho, se bem me lembro- e então entendemos o que se passou: o espelho retrovisor do outro ônibus se quebrou ao se chocar com o nosso, tão próximos passaram.

"Podia ser pior", pensei, visualizando aquelas cenas dantescas de metal retorcido- orgias de aço, sangue e vidro no asfalto. E apalpei o pescoço ligeiramente arranhado.

Ah, aquela linha de ônibus. Tinha algo de amaldiçoado: mil vezes bendito quem podia ir de metrô, táxi. Ou a pé. Cavalo, então, seria um luxo.

Um pouco mais adiante. O passageiro cismou que cismou que queria passar sem pagar passagem. Eu não dou a mínima para as empresas de ônibus- pro diabo com elas. Mas o motorista, e o cobrador, não têm nada a ver com a história. E começou a discussão: o passageiro caloteiro e os funcionários da empresa. Com que autoridade, ou sob qual argumento, o passageiro queria se livrar da tarifa eu não me lembro, mas estava evidentemente alcoolizado, e os bêbados não prezam pela plausibilidade de argumento.

O engraçado foi quando o motorista, um senhor de sotaque nordestino forte, largou o volante (o ônibus estava parado, naturalmente) e, dedo em riste, proferiu poucas e boas para o caloteiro. Daí foi tudo muito rápido, como no episódio do pedaço de retrovisor voando pescoço afora: o cobrador atravessou o corredor do ônibus como uma flecha e se embolou com o passageiro, caindo, literalmente, os dois, na rua.

Foi um deus-nos-acuda. As senhorinhas em pânico, o motorista ainda vociferando de dedo em riste, e cobrador e passageiro embolados na grama do Aterro do Flamengo. Foi impulso, mas desci do ônibus, eu e alguns outros passageiros, para apartar a briga. Só depois pensei naquelas histórias, de facadas e tiros sobrando para os pacifistas intrometidos que tentam apartar brigas. Mas, sendo o correto a se fazer, eis-me entre os brigões, separando-os, braços esticados como um Cristo. Os demais passageiros, pacifistas intrometidos como eu, fizeram suas partes e seguraram os "gladiadores", um pelo pescoço, outro pelo tronco. Mesmo seguros, ainda se xingavam, e me lembro de falar para o cobrador, "deixa disso, você tá trabalhando". Não sei se foi meu conselho, mas o cobrador voltou rápido para dentro do ônibus, tão rápido quanto se jogara sobre o passageiro segundos antes. O passageiro, do lado de fora, ainda vociferava, e chegou a segurar meu braço enquanto subíamos -eu e os demais passageiros pacifistas- de volta ao ônibus. O brigão ficou do lado de fora mesmo.

A viagem prosseguiu. Mas eu cá, olhando a Praia de Botafogo pela janela, amaldiçoava o dono da linha de ônibus. O filho da puta não utiliza os próprios serviços que disponibiliza: é rico demais pra isso. Ônibus fica para a raia miúda como nós, apartando brigas e quase tendo pescoços cortados por retrovisores assassinos.

domingo, 24 de abril de 2011

Rápido sonho com ela

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Sonhou com ela, e em consequência a manhã toda se arrastou estranha. Talvez por ter perguntado por ela, talvez por uma nostalgia meio infantil, mas sonhou com ela, e foi bom o sonho. Abraços e beijos como um reencontro, ela excitada por lhe ver, lhe tocar, anos e anos e anos depois. A barriga cresceu e o cabelo já grisalho. Já ela, pelo menos no sonho, linda como sempre. Tanto assunto para colocar em dia! E ela sorrindo, nos seus braços, querendo nada a não ser ele.

Chuvoso lá fora. Golpe insidioso do Destino, fazê-lo sonhar com ela, agora que está tudo bem, agora que passou. Anos depois. Mas ei-la de novo, lhe assombrando como um fantasma antigo. Chove lá fora e teve, há pouco, um fantasma nos seus braços oníricos: morena e de longos cabelos perfumados. Como ela é nas suas lembranças. Dos cabelos não esquece jamais, como desciam pelos ombros, os olhos brilhando quando sorriam para ele.

Agora brilham para o marido. Viu no Facebook. Pobre coitado. Daria conta? Pois ela não é pra qualquer um. Não para um loser com o marido parecia ser.

Despeito puro, admitiu, e riu baixinho para si próprio.

Hoje é sábado, terá boteco logo mais. O fantasma moreno de olhos brilhantes lhe assombrando, o remédio era encher a cara.

sábado, 9 de abril de 2011

O diagnóstico

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Ele viajava no metrô, sentado, Bukowski no colo. Bukowski foi acidente de percurso: era o que tinha no jornaleiro, tava baratinho, pegou e pagou. Mas gostou, ao menos distraía a mente. Porque era isso ou pensar no diagnóstico, fúnebre, sinistro, que ainda fazia eco na cabeça: tumor, possivelmente maligno. Sentiu um arrepio, o "possivelmente", em seus ouvidos impressionáveis, soando como "decididamente".

Há pouco, a Lagoa e Ipanema. Mas foi entrar na clínica, foi se submeter à biópsia, e o que era sol e luz virou treva e escuro, o "possivelmente maligno" soando cruel como uma sentença de morte. Mas havia esse livrinho de Bukowski, havia literatura -que sempre foi a salvação do sofredor, não disse John Cheever?- e havia moças bonitas no vagão. Tentou se distrair. Mas o fatalismo caiu feito uma capa de chumbo.

"Como levarei meu amor pela vida...?", pergunta um poema de Maiakovsky. Só que ele, e esse detalhe aumentava a angústia, nunca se ligou muito nisso de amor pela vida. Quando se está vivo, oras, vive-se e só. Alguém por acaso sente amor pela respiração? Por comer? Respira-se e come-se sem prestar muita atenção nisso. Ah, mas quando nos falta o ar, quando nos falta a comida...daí percebemos.

Quando nos falta a vida, é que ela se torna preciosa.

Ingrato, o ser humano. Apenas agora em que o "possivelmente maligno" ressoava nos ouvidos, é que ele percebeu o quanto cada segundo tem sua importância. Pensou em escrever um testamento-manifesto, algo como "ó homens, valorizem a vida!", mas pareceu algo absurdamente piegas e brega, ainda mais diante do Bukowski aberto no colo.

Porque Bukowski não queria saber de nada aquilo. Era durão. Osso duro de doer. Não ia ficar se lamuriando, porra, és um homem ou um rato? Literatura de macho. Porres e fodas, que mais um homem pode querer?

Ao longo da semana foi tocando a vida. Não faltou ao trabalho nenhum dia. Podia morrer em breve, mas que fosse na hora- antes, não. Não ia se abater. Até que veio o dia do diagnóstico final...Um dia arrastado, sombrio, claustrofóbico. É hoje a sentença de morte- ou de liberdade. Cinquenta a cinquenta. Façam suas apostas, ladies and gentlemen.

No consultório, o médico com o resultado em mãos.

-E então, doutor?

-Tecido tireoideano do lobo esquerdo exibindo vasocongestão e discreto infiltrado inflamatório mononuclear no interstício blá-blá-blá.

Minutos de parolagem.

-Blá-blá-blá reação gigantocitária e fibrose e parêquima cística blá-blá-blá.

E finalmente:

-Ausência de malignidade no material examinado.

-Doutor, mas então...Então...?

Daí o fantasma de Bukowski me soprou no ouvido:

-Não falei que não era porra nenhuma?

domingo, 27 de março de 2011

O jardim nos fundos

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Isso foi quando eu morava em Copacabana, isto é, no período antediluviano. Havia uma praça defronte ao apartamento, onde costumávamos brincar, muitos brinquedos e muitos mendigos, o primeiro contato, aos olhos infantis, com a miséria. Mas brincávamos e ignorávamos tudo, em meio a escorregas, balanços e aquele treco em que subimos, parecido com uma teia de aranha, uma profusão de tubos de metal formando uma espécie de gaiola.

O parquinho era legal, mas dava sempre vontade de variar. Tinha outro alguns quarteirões depois, mas também enjoava às vezes (apesar do magnífico castelo, tipo medieval, no qual era possível subir e contemplar o parque das amuradas, onde entrávamos esperando encontrar, naquela excitação infantil, cavaleiros em armadura). Nesse parque do castelo, aliás, eu sofri a primeira ameaça da minha vida: um menino mais velho disse que "quebraria minha cara" caso eu pisasse em seus carrinhos, espalhados pelo chão de terra. Quantas vezes eu ouvi a mesma bravata, ao longo da minha existência, perdi a conta- mas aquele foi o primeiro contato com o universo belicoso do ser humano.

E tinha também a praia, claro. Mas isso tudo enjoava.

"-Ah, vamos dar uma volta", disse a garota que tomava conta da gente. "Babá", não! Eu já era grande...E minha mãe sorria e me dava razão, mas deixava escapulir, minutos depois, "-chama sua babá...". "-Vamos dar uma volta", disse a moça de novo, e todos nós abraçamos imediatamente a ideia, felizes. Chega de ficar em apartamento, há um mundo lá fora- com teias de aranha de metal e cavaleiros andantes em armadura! E carrinhos a serem pisados, mesmo que isso nos custasse uma surra...

Só na portaria é que vimos que estava chovendo. E agora? Pro parque da frente não dava, pro parque do castelo também não, praia muito menos...Olhei choroso pra babá, digo, pra moça que tomava conta da gente. E ela, tentando nos animar: "-Ah, vamos andando...Pra qualquer lugar". Só que a chuva apertou, e precisamos buscar abrigo o mais rápido possível. Acabamos entrando na galeria de um prédio, tipo comercial, que providencialmente estava aberto, acessível. O prédio, lá dentro, era como qualquer outro- salvo uma portinha no fundo que, na nossa curiosidade, quisemos explorar.

"-Psiu!", disse a moça severa, cônscia de sua função, não querendo perder de vista aqueles moleques traquinas. Mas nem precisava ter nos chamado a atenção: paramos estupefatos, olhando aquele mundo à nossa frente. Porque nos fundos do prédio, além da porta, tinha um jardim com brinquedos. Um parquinho como aquele, escondido daquele jeito, era bastante inusitado. Mas quisemos explorar e, como ninguém barrou a passagem, corremos para os brinquedos. A própria moça ficou encantada, reparando o lugar bucólico, verde, pequeno mas aconchegante. Para nós, as crianças, os brinquedos eram os mesmos de sempre, mas tinha algo de mágico naquele lugar. A chuva tinha parado, e o cheiro de terra molhada daquele dia era como um perfume de fada. Brincamos a tarde inteira. Daí começou a escurecer e a moça nos levou de volta pra casa.

Não me lembro por que, mas nunca mais voltamos ao jardim do prédio. Acho que a moça que cuidava de nós foi dispensada, sendo substituída por outra que ligava menos para jardins escondidos em fundos de prédios.

Já barbado, passei um dia por aquela velha rua, e tive a impressão de ter identificado o prédio do jardim oculto. Estava modificado, com certeza passou por inúmeras reformas ao longo desses anos. Senti uma vontade imensa de entrar e rever aquele lugar mágico, mas percebi que papel ridículo eu estaria fazendo: o de um homem adulto encantado com brinquedos de criança. Hesitei um pouco mas acabei passando direto, sem parar.

Mas vou ser sincero, o porquê de não ter parado: a sensação de encantamento daquele dia foi tão intensa, que a impressão que se dá é a de que nada daquilo foi real.

Talvez, se voltássemos agora lá, neste exato momento, ninguém possa nos dar as devidas informações. Mesmo os porteiros mais antigos irão coçar a cabeça, intrigados, e dizer que nunca ouviram falar desse tal jardim nos fundos do prédio. O síndico vai dizer a mesma coisa, e talvez o morador mais velho de todos vá afirmar, de pés juntos, que nunca houve um jardim nos fundos do prédio.

Pensando hoje, olhando pra trás, talvez tenha sido mesmo imaginação de criança.

Ou então era uma porta para a Terra do Nunca, se abrindo a cada 100 anos.

segunda-feira, 21 de março de 2011

"Canis moribundus"

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O cachorro arfava e arfava. Dava dó: era osso puro, meio palmo de língua para fora, um olhar de incompreensão indescritível para nós. É por isso que acho o sofrimento animal pior que o sofrimento humano (sim, eu sei que o homem também é um animal): o bicho não entende, não compreende porque sofre. O homem não: é a dengue, imbecil!, a febre, a disenteria, o escorbuto, o câncer, que diabos, é a AIDS! E o homem entende, sofre mas entende, sabe do que se trata. Tá na internet, se quiser tirar dúvidas. Já o bicho é diferente. Tanta dor e sofrimento não entram em sua pequena mente, sente toda aquela dor mas, em sua cabecinha pouco evoluída, darwinianamente falando, não pode sequer cogitar o porquê de sofrer.

E Rex estava lá, as costelas à mostra. Se tem algo que me dói, nos "Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia Márquez, é a senilidade inexorável, atingindo a todos os personagens. O meu velho cachorro era presa da mesma doença senil, da mesma decadência da idade. Há coisa mais triste que a velhice? Joelhos que não se aguentam, dedos que mal se fecham, voz débil...É como voltar à infância pelo contrário. A diferença é que a infância tem vida diante de si, já a velhice, morte.

Ganiu fraco. Até para isso fazia esforço.

Mas não era só a idade que estava acabando com ele. O veterinário mostrou no ultrassom: "-Olha, o tumor", e na tela apareceu aquela monstruosidade. "-Olha, outro", e ia passando a máquina pelo corpo do bicho. Sim, idiota, é um tumor, e outro e outro e outro. É por isso que estou no veterinário, não é mesmo? "-Olha..." Você não trata exatamente dessas coisas? Não é para isso que vocês servem?

"-Olha...", e o veterinário explicava desajeitadamente. "-Olha...", ok, ok, já entendi. Não tem cura. O paciente é irracional, eu não.

Pego Rex no colo. Pesa quase nada. Muito fraco para sair sobre as próprias patas. Me dirijo à saída.

"-Olha...A conta...".

Mercenário.

Em casa, a família debatendo. EUTANÁSIA JAMAIS. É um homicídio na minha opinião. Sim, "homicídio", "homi", homo, homem, "cídio", caedere, matar. Rex não era um homem, mas, porra, para mim era como se fosse. Fora de questão. Tiver que morrer, e realmente irá -e o irmão mais novo fez cara de choro nessa parte- que fosse naturalmente. E assim fomos tocando a vida, tentando fazer os últimos dias de Rex os melhores possíveis: curtos passeios, na medida certa para não extenuá-lo, a comidinha mais saborosa (pra quê dieta, quando se é moribundo?), brinquedos e brincadeiras- até um idoso como Rex gosta de diversão.

É claro que isso teria um fim muito em breve. Cada vez mais fraco, os ganidos já gemidos de moribundo. Pobre Rex.

Fui trabalhar e lhe dei um beijo de despedida. Até mais tarde!

À noite, voltei para casa. A família toda na sala, chorando, a mãe de olhos vermelhos. Mas o que aconteceu? O que houve?

"-Olha..."

quinta-feira, 10 de março de 2011

I wanna be a rockstar

Um comentário:
Há pessoas que, sentimos, simpatizam de cara conosco. Por mais diferentes que sejamos, por mais que, à primeira vista, não tenhamos nada em comum: ainda assim, essas pessoas vão com nossa cara de primeira. Foi o caso dele desde o primeiro momento, largos sorrisos e comentários espirituosos, em tudo procurando o meu aval. Até porque não havia muita escolha: como um dos frontmen da banda que eu era, ele tinha, mesmo que não quisesse, que me aturar.

Mas não era nada forçado. Percebi isso no dia em que, no intervalo de um ensaio da banda, eu e ele descemos para comprar cachaça e limão para caipirinha. Éramos (ainda sou) partidário da ideia de que banda de rock tem que ensaiar sob aditivos: o "sexo, drogas e rock 'n roll" é quase uma religião. Nesse dia, então, na fila do supermercado, enquanto o resto da banda nos aguardava lá em cima impaciente, ele abriu sua vida, literalmente abriu sua vida para mim. Eu percebi que daquele dia em diante eu seria seu melhor amigo, mesmo que ele próprio não se desse conta disso.

E o ensaio, quando voltamos...Quando dizem que o rock é louco, não é licença poética. É louco mesmo. Some a isso caipirinha com limão mal amassado e erva à vontade: o meu amigo flanava durante o ensaio. Teria Jim Morrison -ou Hendrix, ou Janis, ou Barret, ou Cobain, ou qualquer outro doidão do rock- baixado nele? Com a pandeirola em mãos, acompanhava divinamente todas as músicas que tocávamos, dançando como em transe, olhos e braços para o alto. Ficou excelente! Nem se quiséssemos teríamos tido esse efeito.

Mas todo esse álcool e erva cobram seu preço. Ninguém enche os cornos impunemente. No caso dele, foi um aquário, um mísero aquário com algumas tartarugas verdes, daquelas aquáticas. Cismou que uma delas estava...se afogando! Não riam, foi isso mesmo.

Armou o caos: era urgente salvar a tartaruga. Urgente! Isso importava mais que o ensaio de uma banda de garagem qualquer. Desligou os amplificadores, tomou as baquetas do baterista, queria arrancar os baixos e guitarras de nossas mãos. "-A tartaruga está se afogando!", balbuciava, e eu me vi em uma das situações mais burlescas de toda minha vida. Seguramos o louco, é claro: era forte, mas dócil. Não estava agressivo, apenas desesperado pelo destino inexorável que se desenhava para a pobre tartaruguinha aquática, se afogando no aquário. Um de nós gritou alto, "-Segura a onda!", mas logo em seguida nos preocupamos com os vizinhos: vai que chamariam a polícia para enquadrar esse bando de jovens rockeiros e maconheiros.

O dono da casa (e consequentemente das tartaruguinhas) perdeu a paciência. Sem largar o contrabaixo, olhou nosso amigo nos olhos, a meio palmo de distância, e disse numa voz baixa, entre os dentes: "-Se a tartaruga morrer ou não, é o destino dela...!", frisando o "destino".

O destino da tartaruga. De punk rock aos fatalismos da existência. Não era mais Joey Ramone o tema daquela tarde, mas os próprios desígnios misteriosos da vida. Que ensaio.

O efeito daquela rápida bad trip passou (quem sabe essa profunda reflexão filosófica tivesse servido de banho frio) e pudemos retomar o ensaio. Mas o nosso amigo já não estava tão sublime assim, a pandeirola mais tímida em suas mãos.

Os meses se passaram, vários e vários ensaios depois. Daí veio a faculdade e todos nós, de um modo ou de outro, "encaretecemos". Pagar contas e trabalhar, preferencialmente com uma solene gravata no pescoço: e ei-nos todos velhos em corpos de jovens.

Eu estava no bar quando ouvi falar dele pela última vez. Passou um conhecido em comum, apressado- chamei-lhe e perguntei pela turma. "-Não tá sabendo? Ele tá debaixo da terra". Debaixo da terra, assim mesmo, direto ao ponto. Nosso amigo havia sido pego num fogo-cruzado, em uma favela da região, numa incursão policial. Era o espírito rocker: frequentar lugares perigosos. Ou talvez a busca por mais erva, não importa mais.

Saiu de cena de forma punk. Foi coerente, não se pode negar. Encontrou seu destino, ninguém foge dele, nem as tartaruguinhas.

Ah, sim. Viveram ainda muito tempo. Nenhuma delas se afogou.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O mar me roubou ela

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Ela estava numa posição defensiva: sentada na areia, os braços envolvendo os joelhos. Fazia frio e a maresia trazia um cheiro gostoso de mar. Eu estava um pouco atrás, também sentado abraçando as pernas. Meio que não sabia o que dizer. Como romper a postura defensiva, como desviar a atenção dela: das ondas do mar para mim.

"Olha", ela disse súbito, sem se virar, "não tenho tido vontade de estar com ninguém". Para bom entendedor, meia-palavra basta. Não respondi: o único barulho era o das ondas. Há pouco tínhamos nos amassado, ainda no calçadão. Mas foi sentar na areia, foi sentir a brisa marítima e ouvir as ondas, que ela entrou num estado de torpor, algo catatônico. Pensando em sei lá o quê- mas não era em mim.

Fui trocado pelo mar.

Ou era a lembrança de outro sujeito, talvez areia molhada a fizesse lembrar dele.

"Eu entendo", respondi. "Também estou nessa fase", continuei, e era mentira, porque o que eu mais queria era retomar o amasso, língua com língua e mãos pelo corpo, como fizemos há pouco. Mas, reparem bem: não era mera luxúria. Tesão há sempre (tenho 19 anos recém-completos!), mas havia algo mais me cutucando. Apaixonado, não digo, encantado, enfeitiçado, maravilhado- isso eu digo. E o vento e a maresia também mexeram comigo, daí deu de repente vontade de chorar: entrei no catatonismo, que nem ela. Também a troquei pelo mar, mas olhem que coisa esquisita, nessa troca pelo mar ela também estava presente, tipo, não a queria mais e sim ao mar, mas o mar que eu queria eu queria por causa dela.

Coisa confusa. Só tenho 19 anos, não devia ser profundo assim. Deixemos que o mar seja profundo. Eu, não.

Olhei pra ela de novo. Esqueceu-me de vez: o mar, o mar, o mar, eu não era nada. Zero a zero. Merda.

Cansei daquilo e me levantei, batendo na bunda com as mãos para tirar a areia úmida que grudara. Soltei um "fui!" seco, solene, orgulhoso como um rei babilônico, e tomei o rumo do calçadão. Mãos no bolso, sem olhar pra trás, uma bruta ereção frustrada dentro da calça.

Ela, nem aí. Sentada na areia abraçando os joelhos, era atenção só para o mar.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fossa ao som de Bob Marley

2 comentários:
Ligou o som, acendeu o cigarro e foi pra janela. Bob Marley sempre o deixava triste. Sentia no fundo o eco dos lamúrios dos velhos escravos, o estalar do chicote na pele. E tinha outra coisa também: falar em redenção, em redemptions songs para ele que, justamente, era um prisioneiro, era cruel. Deu um trago mais fundo. A prisão era simbólica, naturalmente. Melhor dizendo, figurada, mas real, porque estamos falando do cotidiano, da vida concreta. "Merda", suspirou e tragou de novo, "desemprego". A prisão. Não deu pra evitar o sorriso irônico: é tudo luta de classes, ele e os escravos de Marley.

Lá embaixo também é tipo uma prisão, hein? E sorriu de novo. Ou se é desempregado como ele, ou se assassina 1/3 da vida de 8 às 5, como eles. Quem invejava quem? Mas ele já não sorría, sentiu de novo aquelas pontadas no peito. Engraçado: a tristeza nele vinha como dor física. O chicote nas costas dói mais, ponderou...Mas era também uma chicotada figurada. Daquelas que arrancam couro e carne, e sangue e pus.

"Merda", outro suspiro e outro trago, "fracasso".

"Mas e se...? E se...? E...?", mas era inútil. Um fracassado não tem ideias, não consegue romper o círculo. O fracasso traumatiza. Tipo um bicho ou criança que, de tanto apanhar, se encolhe ao menor gesto brusco de alguém, por mais inocente que fosse. "E como a vida tem batido, hein, meu velho?", e teve forças ainda para sorrir, um sorriso efêmero. Chorar já não dava: acabou o estoque. Apanhar demais também tira a sensibilidade, fica-se lá, parado, esperando o próximo golpe, a próxima porrada, já não se grita. Já se resignou.

Será que era assim que se sentiam os velhos escravos? Depois de um tempo, já se está anestesiado. O chicote ou o beijo, que diferença faz? Já não se sente nada mesmo.

"Merda", suspiros e tragos, "miséria". Das aulas de literatura francesa evocou Baudelaire, "O Satan, prends pitié de ma longue misère!", baixinho, como uma oração. A blasfêmia por um minuto o assustou, o catecismo da infância ainda no subconsciente. Mas Deus...Deus...Já era a essa altura uma ficção. Se Deus não ouve o pedido, ou se ouve e não interfere, o que dá no mesmo, que diferença faz Deus existir ou não? Certo tava Nietzsche, ele pensou, apesar de não conhecer muito Nietzsche: ouviu dizer que deu umas porradas na Igreja, isso bastava. "Meu heroi...", e tragou de novo.

Marley se lamuriava no cd player. Olhava a janela: ia pular quando as faixas terminassem. Pensou no frio na barriga, tipo montanha-russa, que deve dar, pensou no escândalo entre as pessoas lá embaixo. Esmagado feito um tomate. Teve pena de si mesmo. Tanta coisa, namoradas e poemas, amigos e mar, vinho e estrelas, para acabar tudo como um tomate. "É isso...? Será que é isso...?" A fonte não estava esgotada: veio a lágrima. De novo a blasfêmia do pensamento do pulo o assustou, e teve um sobressalto. No mesmo momento Marley cantou os últimos acordes, os bongôs silenciavam tristes. Sentia-se melhor: talvez tanta blasfêmia, em pensamento, tivesse lhe depurado. Deu o último trago e jogou fora o cigarro, o cigarro exaurido, e não ele, numa queda livre até o solo.

"A alforria não chega sempre?", pensou afinal. Amanhã é sempre um novo dia. Parou de coisa, fechou a janela e foi ler jornal.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Viver é beijar a lona

5 comentários:
Ele, é claro, não acusou o golpe. Que os miolos foram chacoalhados por aquele cruzado de direita todos perceberam, mas ele continuou lá, em pé, cara de durão, guarda alta como convém. Guarda alta agora- caso contrário, o cruzado não tinha entrado. "Porra, levanta essa guarda!", o córner dele gritou, "levanta essa guarda ou entra outro!". Não sei se ele ouvia: todos nós aqui embaixo escutavam atentamente, mas vai saber o que se passa quando se está , no ringue. Há sempre a impressão de que o mundo se resume àqueles parcos metros quadrados, e a Humanidade, ela toda, a um só sujeito, o oponente, que também está lá em pé com cara de durão louco para fazer picadinho de você. Acho que nem do árbitro da luta a gente se dá conta, só quando ele se mete entre os dois e encerra o combate, impedindo que sejamos exterminados.

Bem. Guarda alta ou não, outro torpedo entrou: dessa vez, a pose de durão se desmanchou, desmoronou, digamos, quando ele foi ao chão. "Calma, garoto", pensei, "é só um knockdown, não um knockout". Nada está perdido.

A diferença? Em um caso a gente beija a lona e volta. Na outra, fica de vez.

E ele voltou, antes que a contagem do árbitro chegasse ao "10". A pose de durão voltou, até mais raivosa, mas o sangue já vinha em bicas. A plateia urrou, dessa vez de satisfação. Sabem apreciar uma bela luta, canalhas, adorariam assistir decapitações num coliseu romano. Acontece que eu também urrei, adoro cenas de recuperação.

Mas quando não é pra ser, não é. Apesar de toda bronca do córner, apesar de toda pose de durão, guarda alta e o escambau, lá vai nosso amigo de novo pra lona, massacrado pelos torpedos, mísseis, bombas (atômica e H!) que o adversário despejava sobre ele. Dessa vez a contagem chegou ao "10", já era, o árbitro levanta o braço do vencedor e a turma da sua academia fazia a algazarra. Já nós, da academia do vencido, corríamos para socorrê-lo.

O derrotado estava abatido. Não era só o roxo e o sangue no rosto: era algo dentro dele. Ser lutador em meio expediente é difícil. Há que se alimentar bem, há que ter material, suplementos, tempo, médicos, fisioterapeutas. Mas como, se se trabalha num subemprego? É por isso que os torpedos do outro são mais fortes. São vitaminados. Os do nosso amigo, que agora apalpa o nariz castigado, são desnutridos.

Cheguei pra ele e disse: "Ei, parceiro, não fique assim. Isso foi só um knockdown. A contagem chegou ao '10', mas você está aí, respirando, pode ficar sobre as duas pernas. É, cara, você não perdeu. Só a morte é a derrota, só a morte é o knockout".

Até lá, segue-se lutando. Enfrentamos a vida, guarda alta e cara de durão. Podemos beijar a lona, mas levantamos.

Acho que ele entendeu o que eu quis dizer, e sorriu exibindo o protetor bucal sanguinolento.

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