O ônibus descia veloz. Sem exageros, a velocidade normal naquelas circunstâncias, quando surgiu o outro, em sentido oposto, este sim muito, muito veloz. Ruas de mão dupla têm esse problema. Então veio o estalo, alto, e o pedaço do espelho raspando perigosamente pelo pescoço. Durou segundos, uma rápida comoção entre os passageiros -um e outro gritinho, se bem me lembro- e então entendemos o que se passou: o espelho retrovisor do outro ônibus se quebrou ao se chocar com o nosso, tão próximos passaram.
"Podia ser pior", pensei, visualizando aquelas cenas dantescas de metal retorcido- orgias de aço, sangue e vidro no asfalto. E apalpei o pescoço ligeiramente arranhado.
Ah, aquela linha de ônibus. Tinha algo de amaldiçoado: mil vezes bendito quem podia ir de metrô, táxi. Ou a pé. Cavalo, então, seria um luxo.
Um pouco mais adiante. O passageiro cismou que cismou que queria passar sem pagar passagem. Eu não dou a mínima para as empresas de ônibus- pro diabo com elas. Mas o motorista, e o cobrador, não têm nada a ver com a história. E começou a discussão: o passageiro caloteiro e os funcionários da empresa. Com que autoridade, ou sob qual argumento, o passageiro queria se livrar da tarifa eu não me lembro, mas estava evidentemente alcoolizado, e os bêbados não prezam pela plausibilidade de argumento.
O engraçado foi quando o motorista, um senhor de sotaque nordestino forte, largou o volante (o ônibus estava parado, naturalmente) e, dedo em riste, proferiu poucas e boas para o caloteiro. Daí foi tudo muito rápido, como no episódio do pedaço de retrovisor voando pescoço afora: o cobrador atravessou o corredor do ônibus como uma flecha e se embolou com o passageiro, caindo, literalmente, os dois, na rua.
Foi um deus-nos-acuda. As senhorinhas em pânico, o motorista ainda vociferando de dedo em riste, e cobrador e passageiro embolados na grama do Aterro do Flamengo. Foi impulso, mas desci do ônibus, eu e alguns outros passageiros, para apartar a briga. Só depois pensei naquelas histórias, de facadas e tiros sobrando para os pacifistas intrometidos que tentam apartar brigas. Mas, sendo o correto a se fazer, eis-me entre os brigões, separando-os, braços esticados como um Cristo. Os demais passageiros, pacifistas intrometidos como eu, fizeram suas partes e seguraram os "gladiadores", um pelo pescoço, outro pelo tronco. Mesmo seguros, ainda se xingavam, e me lembro de falar para o cobrador, "deixa disso, você tá trabalhando". Não sei se foi meu conselho, mas o cobrador voltou rápido para dentro do ônibus, tão rápido quanto se jogara sobre o passageiro segundos antes. O passageiro, do lado de fora, ainda vociferava, e chegou a segurar meu braço enquanto subíamos -eu e os demais passageiros pacifistas- de volta ao ônibus. O brigão ficou do lado de fora mesmo.
A viagem prosseguiu. Mas eu cá, olhando a Praia de Botafogo pela janela, amaldiçoava o dono da linha de ônibus. O filho da puta não utiliza os próprios serviços que disponibiliza: é rico demais pra isso. Ônibus fica para a raia miúda como nós, apartando brigas e quase tendo pescoços cortados por retrovisores assassinos.
Meu caro, vc não imagina o q temos do lado d cá do túnel. rs
ResponderExcluirGostei do texto pela forma como foi escrito.
Abraços, tenha um bom dia.
Amigo Escritor, me senti na história, no 'causo'.
ResponderExcluirPassei pra conhecer e já puxei a cadeira...
E voltarei mais vezes!
bj.
Catita
Que bom que gostaram. Qualquer semelhança com a coincidência é mera realidade :)
ResponderExcluirmuito bom amigo, adorei o texto, esses dias peguei um mini-ônibus que o máximo permitido de passageiros em pé é de 11 pessoas e tinha uns 20 em pé, muito desagradável, enquanto isso o dono da empresa deveria estar dirigindo uma confortável rand rover ou um audi.
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