Ligou o som, acendeu o cigarro e foi pra janela. Bob Marley sempre o deixava triste. Sentia no fundo o eco dos lamúrios dos velhos escravos, o estalar do chicote na pele. E tinha outra coisa também: falar em redenção, em redemptions songs para ele que, justamente, era um prisioneiro, era cruel. Deu um trago mais fundo. A prisão era simbólica, naturalmente. Melhor dizendo, figurada, mas real, porque estamos falando do cotidiano, da vida concreta. "Merda", suspirou e tragou de novo, "desemprego". A prisão. Não deu pra evitar o sorriso irônico: é tudo luta de classes, ele e os escravos de Marley.
Lá embaixo também é tipo uma prisão, hein? E sorriu de novo. Ou se é desempregado como ele, ou se assassina 1/3 da vida de 8 às 5, como eles. Quem invejava quem? Mas ele já não sorría, sentiu de novo aquelas pontadas no peito. Engraçado: a tristeza nele vinha como dor física. O chicote nas costas dói mais, ponderou...Mas era também uma chicotada figurada. Daquelas que arrancam couro e carne, e sangue e pus.
"Merda", outro suspiro e outro trago, "fracasso".
"Mas e se...? E se...? E...?", mas era inútil. Um fracassado não tem ideias, não consegue romper o círculo. O fracasso traumatiza. Tipo um bicho ou criança que, de tanto apanhar, se encolhe ao menor gesto brusco de alguém, por mais inocente que fosse. "E como a vida tem batido, hein, meu velho?", e teve forças ainda para sorrir, um sorriso efêmero. Chorar já não dava: acabou o estoque. Apanhar demais também tira a sensibilidade, fica-se lá, parado, esperando o próximo golpe, a próxima porrada, já não se grita. Já se resignou.
Será que era assim que se sentiam os velhos escravos? Depois de um tempo, já se está anestesiado. O chicote ou o beijo, que diferença faz? Já não se sente nada mesmo.
"Merda", suspiros e tragos, "miséria". Das aulas de literatura francesa evocou Baudelaire, "O Satan, prends pitié de ma longue misère!", baixinho, como uma oração. A blasfêmia por um minuto o assustou, o catecismo da infância ainda no subconsciente. Mas Deus...Deus...Já era a essa altura uma ficção. Se Deus não ouve o pedido, ou se ouve e não interfere, o que dá no mesmo, que diferença faz Deus existir ou não? Certo tava Nietzsche, ele pensou, apesar de não conhecer muito Nietzsche: ouviu dizer que deu umas porradas na Igreja, isso bastava. "Meu heroi...", e tragou de novo.
Marley se lamuriava no cd player. Olhava a janela: ia pular quando as faixas terminassem. Pensou no frio na barriga, tipo montanha-russa, que deve dar, pensou no escândalo entre as pessoas lá embaixo. Esmagado feito um tomate. Teve pena de si mesmo. Tanta coisa, namoradas e poemas, amigos e mar, vinho e estrelas, para acabar tudo como um tomate. "É isso...? Será que é isso...?" A fonte não estava esgotada: veio a lágrima. De novo a blasfêmia do pensamento do pulo o assustou, e teve um sobressalto. No mesmo momento Marley cantou os últimos acordes, os bongôs silenciavam tristes. Sentia-se melhor: talvez tanta blasfêmia, em pensamento, tivesse lhe depurado. Deu o último trago e jogou fora o cigarro, o cigarro exaurido, e não ele, numa queda livre até o solo.
"A alforria não chega sempre?", pensou afinal. Amanhã é sempre um novo dia. Parou de coisa, fechou a janela e foi ler jornal.