This story is fiction, and any events or near-similar events in actual life which did transpire have not prejudiced the author toward any figures involved or uninvolved; in other words, the mind, the imagination, the creative facilities have been allowed to run freely, and that means invention, of which said is drawn and caused by living one year short of half a century with the human race . . . and is not narrowed down to any specific case, cases, newspaper stories, and was not written to harm, infer or do injustice to any of my fellow creatures involved in circumstances similar to the story to follow.


(Charles Bukowski, "The Murder Of Ramon Vasquez")

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fossa ao som de Bob Marley

2 comentários:
Ligou o som, acendeu o cigarro e foi pra janela. Bob Marley sempre o deixava triste. Sentia no fundo o eco dos lamúrios dos velhos escravos, o estalar do chicote na pele. E tinha outra coisa também: falar em redenção, em redemptions songs para ele que, justamente, era um prisioneiro, era cruel. Deu um trago mais fundo. A prisão era simbólica, naturalmente. Melhor dizendo, figurada, mas real, porque estamos falando do cotidiano, da vida concreta. "Merda", suspirou e tragou de novo, "desemprego". A prisão. Não deu pra evitar o sorriso irônico: é tudo luta de classes, ele e os escravos de Marley.

Lá embaixo também é tipo uma prisão, hein? E sorriu de novo. Ou se é desempregado como ele, ou se assassina 1/3 da vida de 8 às 5, como eles. Quem invejava quem? Mas ele já não sorría, sentiu de novo aquelas pontadas no peito. Engraçado: a tristeza nele vinha como dor física. O chicote nas costas dói mais, ponderou...Mas era também uma chicotada figurada. Daquelas que arrancam couro e carne, e sangue e pus.

"Merda", outro suspiro e outro trago, "fracasso".

"Mas e se...? E se...? E...?", mas era inútil. Um fracassado não tem ideias, não consegue romper o círculo. O fracasso traumatiza. Tipo um bicho ou criança que, de tanto apanhar, se encolhe ao menor gesto brusco de alguém, por mais inocente que fosse. "E como a vida tem batido, hein, meu velho?", e teve forças ainda para sorrir, um sorriso efêmero. Chorar já não dava: acabou o estoque. Apanhar demais também tira a sensibilidade, fica-se lá, parado, esperando o próximo golpe, a próxima porrada, já não se grita. Já se resignou.

Será que era assim que se sentiam os velhos escravos? Depois de um tempo, já se está anestesiado. O chicote ou o beijo, que diferença faz? Já não se sente nada mesmo.

"Merda", suspiros e tragos, "miséria". Das aulas de literatura francesa evocou Baudelaire, "O Satan, prends pitié de ma longue misère!", baixinho, como uma oração. A blasfêmia por um minuto o assustou, o catecismo da infância ainda no subconsciente. Mas Deus...Deus...Já era a essa altura uma ficção. Se Deus não ouve o pedido, ou se ouve e não interfere, o que dá no mesmo, que diferença faz Deus existir ou não? Certo tava Nietzsche, ele pensou, apesar de não conhecer muito Nietzsche: ouviu dizer que deu umas porradas na Igreja, isso bastava. "Meu heroi...", e tragou de novo.

Marley se lamuriava no cd player. Olhava a janela: ia pular quando as faixas terminassem. Pensou no frio na barriga, tipo montanha-russa, que deve dar, pensou no escândalo entre as pessoas lá embaixo. Esmagado feito um tomate. Teve pena de si mesmo. Tanta coisa, namoradas e poemas, amigos e mar, vinho e estrelas, para acabar tudo como um tomate. "É isso...? Será que é isso...?" A fonte não estava esgotada: veio a lágrima. De novo a blasfêmia do pensamento do pulo o assustou, e teve um sobressalto. No mesmo momento Marley cantou os últimos acordes, os bongôs silenciavam tristes. Sentia-se melhor: talvez tanta blasfêmia, em pensamento, tivesse lhe depurado. Deu o último trago e jogou fora o cigarro, o cigarro exaurido, e não ele, numa queda livre até o solo.

"A alforria não chega sempre?", pensou afinal. Amanhã é sempre um novo dia. Parou de coisa, fechou a janela e foi ler jornal.

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