Ele, é claro, não acusou o golpe. Que os miolos foram chacoalhados por aquele cruzado de direita todos perceberam, mas ele continuou lá, em pé, cara de durão, guarda alta como convém. Guarda alta agora- caso contrário, o cruzado não tinha entrado. "Porra, levanta essa guarda!", o córner dele gritou, "levanta essa guarda ou entra outro!". Não sei se ele ouvia: todos nós aqui embaixo escutavam atentamente, mas vai saber o que se passa quando se está lá, no ringue. Há sempre a impressão de que o mundo se resume àqueles parcos metros quadrados, e a Humanidade, ela toda, a um só sujeito, o oponente, que também está lá em pé com cara de durão louco para fazer picadinho de você. Acho que nem do árbitro da luta a gente se dá conta, só quando ele se mete entre os dois e encerra o combate, impedindo que sejamos exterminados.
Bem. Guarda alta ou não, outro torpedo entrou: dessa vez, a pose de durão se desmanchou, desmoronou, digamos, quando ele foi ao chão. "Calma, garoto", pensei, "é só um knockdown, não um knockout". Nada está perdido.
A diferença? Em um caso a gente beija a lona e volta. Na outra, fica de vez.
E ele voltou, antes que a contagem do árbitro chegasse ao "10". A pose de durão voltou, até mais raivosa, mas o sangue já vinha em bicas. A plateia urrou, dessa vez de satisfação. Sabem apreciar uma bela luta, canalhas, adorariam assistir decapitações num coliseu romano. Acontece que eu também urrei, adoro cenas de recuperação.
Mas quando não é pra ser, não é. Apesar de toda bronca do córner, apesar de toda pose de durão, guarda alta e o escambau, lá vai nosso amigo de novo pra lona, massacrado pelos torpedos, mísseis, bombas (atômica e H!) que o adversário despejava sobre ele. Dessa vez a contagem chegou ao "10", já era, o árbitro levanta o braço do vencedor e a turma da sua academia fazia a algazarra. Já nós, da academia do vencido, corríamos para socorrê-lo.
O derrotado estava abatido. Não era só o roxo e o sangue no rosto: era algo dentro dele. Ser lutador em meio expediente é difícil. Há que se alimentar bem, há que ter material, suplementos, tempo, médicos, fisioterapeutas. Mas como, se se trabalha num subemprego? É por isso que os torpedos do outro são mais fortes. São vitaminados. Os do nosso amigo, que agora apalpa o nariz castigado, são desnutridos.
Cheguei pra ele e disse: "Ei, parceiro, não fique assim. Isso foi só um knockdown. A contagem chegou ao '10', mas você está aí, respirando, pode ficar sobre as duas pernas. É, cara, você não perdeu. Só a morte é a derrota, só a morte é o knockout".
Até lá, segue-se lutando. Enfrentamos a vida, guarda alta e cara de durão. Podemos beijar a lona, mas levantamos.
Acho que ele entendeu o que eu quis dizer, e sorriu exibindo o protetor bucal sanguinolento.